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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Maria comenta Nietzsche que comenta Tales


A Autora Maria Cristina dos Santos de Souza nos faz perceber a necessidade intrínseca e historicamente verificável de unificação das cidades gregas, levadas a um crescente isolamento, em conseqüência direta de sua profunda adesão a uma cultura extremamente perpassada por mitos e um “universo multifacetado da religião” que “congregava” “formas as mais primitivas e contraditórias de antropomorfismo, compondo, assim, uma verdadeira fantasmagoria grega”. Como afirmou a autora, as cidades gregas já não suportavam mais este estado de coisas, que “poderiam conduzi-las à destruição recíproca”, além da exposição fácil à suscetibilidade ao “fortalecimento progressivo do mundo oriental, ávido de outras terras e povos”.
Caminhando por essa via de raciocínio, a autora esboça um contexto límpido no qual situa a compreensão do pensamento de Nietzsche quanto ao surgimento da filosofia atrelado, contundentemente, a “uma tentativa de fazer frente ao processo de afastamento e de enfraquecimento das cidades gregas, erguendo-se contra o mito enquanto o principal causador desses processos”.
E é justamente em Tales que se divisa pela primeira vez, entre os helenos, a figura do “combatente ardoroso dos mitos”, pois havia urgência em “ultrapassar os parâmetros confusos e contraditórios dos mitos e estabelecer parâmetros mais simples, precisos e estáveis para as cidades”.
Começava, então, o combate racional dos guerreiros da “physis”. Liderados por Tales, como seu primeiro general, que utilizou, genial e estrategicamente, um artefato novo e assombrosamente arrasador: o conceito, causa-consequência do refletir filosoficamente.
“Tudo é água”, disse Tales. E ele quis dizer: basta de mitos, de isolamento, de enfraquecimento; “Tudo é uno” na natureza e vo-lo dou em forma de água, esta unidade sobejamente intuída e imensamente desejada, para que a sede de uni-cidade, também em vós, seja saciada, cidadãos gregos diversamente constituídos sob a mesma, “única” e velha mãe Grécia!
Geograficamente localizada próxima ao Oriente, sendo “praticamente um prolongamento da Ásia Menor”, a Jônia foi o berço da filosofia grega e talvez por isso mesmo tenha assimilado tão facilmente muito da antiga cultura oriental como os “conhecimentos biofísicos, matemáticos e astronômicos milenares”, donde também facilmente pode-se perceber a origem da intuição mística da unidade cósmica que, “transmitida aos gregos foi reaprendida e renovada por uma ampla capacidade de conduzir a um acabamento mais perfeito tudo o que caía em suas mãos”. E aqui, cabe-nos indagar: será que os criadores da Democracia não estavam, na verdade, e para se protegerem da dominação oriental, tomando para si exatamente aquilo que tornava os monárquicos e absolutistas governos do Oriente tão fortes e conquistadores: o espírito de unidade? E não seria mesmo compatível, essa estrangeira virtude política com sua conhecida e vivenciada diversidade nacional?
Assim começou a filosofia: diante do óbvio, o espanto e a contemplação efervescente do “vir-a-ser”. Não era apenas conhecimento, mas o “gosto sutil” pelo conhecer. Não era apenas conhecimento o conhecer gratuito, mas que fosse digno de ser conhecido, com cuidado, zelo e profunda sutileza.
Num salto, os mitos e as ciências antigas foram ultrapassadas; não por prazer de se situar à frente e acima, mas por uma imperiosa vontade de atingir o todo, em sua totalidade única, sepultando o obscuro e o fragmentário.
Então, a autora atinge o cerne do pensamento oculto e aparente de Friedrich Nietzsche, em relação a Tales de Mileto, bem como ao começo mesmo da filosofia.
Ademais, ressalte-se que o próprio Nietzsche, numa lucidez impecável, oferece-nos à apreciação a parábola, perfeitamente adequada, dos dois andarilhos diante do regato selvagem (o desconhecido), prestes à ultrapassagem. Um, o filósofo (a filosofia, o filosofar), de um salto, atinge a outra margem; o outro, o cientista (a ciência, o raciocinar), por natureza, cauteloso, detém-se na pequena pedra e não se harmoniza com o percurso e afunda..., calculando sobre como “chegar...”.
Por fim, como disse Nietzsche, o “clangor total do mundo” fora, de fato, integralmente ouvido por Tales, numa reverberação inconteste e que lhe deu uma absoluta e íntima certeza de ter conectado a abrangência (“Tudo”) do ser (“é”) em sua verdadeira natureza (“água”).


Jorge Pi

BIBLIOGRAFIA


MARIA, C.S.S.. TALES: A DESCOBERTA DO PRINCÍPIO DA UNIDADE GREGA, SEGUNDO FRIEDRICH NIETZSCHE. _________: _______, ______;

COLEÇÃO OS PENSADORES, Nova Cultural Ltda. São Paulo, 2000.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

“As Formas Elementares da Vida Religiosa” _ Émile Durkheim


(Resumo da Introdução e do 1º Capítulo)



Introdução

Objeto da Pesquisa
Sociologia religiosa e teoria do conhecimento


I

Durkheim se propõe analisar e explicar a religião primitiva com o intuito de divisar mais claramente a natureza religiosa do ser humano, em seu aspecto essencial e permanente.
A religião primitiva é diferente das formas mais elevadas do pensamento religioso, mas não é irreligião. Ela pertence ao real e o exprime. Por detrás das aberrações contidas na manifestação religiosa primitiva, esconde-se alguma necessidade humana, individual ou coletiva. Assim, não há religião falsa, todas são verdadeiras a seu modo, sendo igualmente religião.
Por razões de método, deve-se tomar para estudo a religião primitiva: é preciso começar pelo mais simples e, gradativamente, chegar ao mais complexo.
Como todas as religiões são comparáveis, há necessariamente elementos essenciais que lhe são comuns, são somente em seus aspectos exteriores, mas nos mais profundos, permanentes e humanos: o conteúdo da idéia de religião em geral.
Nas sociedades primitivas o tipo individual se confunde com o tipo genérico. Tudo é reduzido ao indispensável (essencial), àquilo sem o que não poderia haver religião.
Assim como a descoberta de Bachofen nos mostra que também havia o matriarcalismo como pedra angular da instituição familiar primitiva, assim também, dizem-nos os etnógrafos que na religião primitiva é estranha, em grande parte, a idéia de divindade. As forças que dirigiam os ritos primitivos eram bem diferentes daquelas que nos são tão comuns em religião, apesar de que aquelas nos facilitam o entendimento das que ocupam o primeiro lugar na atualidade.
As religiões primitivas não somente destacam os elementos constitutivos, mas também a explicam. É que, em sua simplicidade, as religiões primitivas são suscetíveis de serem mais entendidas, pois estão mais próximas às próprias motivações determinantes, sendo mais elucidativas quanto à sua real estrutura antropológica do que o pensamento religioso desnaturado por uma reflexão erudita. Como “para compreender bem um delírio e poder aplicar-lhe um tratamento, o médico tem necessidade de saber qual foi o seu ponto de partida”.
Com o decorrer do tempo as mitologias populares, bem como as sutis teologias sobrepujam aos sentimentos primitivos sentimentos muito diferentes que só imperfeitamente deixam transparecer a sua real natureza.
Este estudo é portanto uma retomada do velho problema da origem das religiões.
Porém, “como toda instituição humana, a religião não começa em parte alguma”.
As causas primeiras estão sempre presentes na própria religião e mais claramente evidenciadas nas religiões primitivas, em sociedades menos complicadas.
Eis porque buscar as origens: não por atribuir às religiões primitivas virtudes particulares, e na verdade são rudes e grosseiras, mas pela natureza instrutiva oriunda de seu próprio aspecto grosseiro, já que constituem experiências cômodas em que os fatos e suas relações são mais fáceis de perceber. Divisar, na complexidade, os seus elementos básicos, formadores, para melhor compreender a complexidade mesma. Não com a pretensão de esgotar o entendimento, mas com o propósito de lhe dirigir o percurso da elucidação.

II

“Não há religião que não seja uma cosmologia ao mesmo tempo que uma especulação sobre o divino”.
“Se a filosofia e a ciência nasceram da religião, é que a própria religião começou por fazer as vezes de ciências e de filosofia”.
Criação de um homem previamente formado, a religião também o formou espiritual, cultural e sociologicamente.
Há certas categorias do entendimento humano, como as noções de tempo, de espaço, de gênero, de número, de causa, de substância, de personalidade e de eficácia, dentre outras, que, como propriedades universais das coisas ou a ossatura da inteligência, são um produto direto do pensamento religioso, facilmente perceptíveis quando se analisam metodicamente as religiões primitivas.
Então, conclui-se que a religião é uma coisa eminentemente social ou, ao menos rica em elementos sociais. Ela exprime e representa a coletividade, através de ritos, que se destinam a manter ou refazer alguns estados mentais de uma determinada coletividade humana.
Por exemplo: o tempo, como indicativo da sucessão de momentos, abarca e põe em movimento regular não somente a história individual mas a de toda a coletividade humana, dando, através da criação de uma abstração genericamente convencionada, um sentido linear de conexão mental entre aquilo que se qualifica e se quantifica como passado, presente e futuro, relativamente à consciência humana.
Outro exemplo: para localizar as coisas é preciso dividir e diferenciar aquilo que se convencionou axiomaticamente se chamar espaço, com algo absoluto, sob a forma de certo padrão comum partilhado por cada e todo membro de uma sociedade, como acima, abaixo, ao leste, ao oeste, ao norte e ao sul, nitidamente um produto de origem social, coletiva.
“O princípio de identidade domina hoje o pensamento científico; mas há vastos sistemas de representações que desempenharam na história das idéias um papel considerável e nos quais ele é freqüentemente ignorado: são as mitologias, desde as mais grosseiras até as mais elaboradas”.
Há duas doutrinas que tentam ver a origem das categorias através de ângulos opostos: uma afirma que elas existiriam imanentes ao espírito humano e a outra que elas seria construções mentais humanas. Tais concepções há séculos se chocam uma contra outra.
Se admitirmos a origem social das categorias, uma nova atitude torna-se possível, permitindo escapar ao choque entre os empiristas e os aprioristas conceptuais.
A sociedade é uma realidade sui-generis; singular no universo. É o somatório dinâmico de uma imensa cooperação de multidões de espíritos os mais diversos, que nos legaram as combinações de suas idéias (saber) e ações (experiência) no transcorrer do tempo e no transmutar do espaço.
O ser humano é duplo: um individual e outro social. Na medida em que participa da sociedade, o indivíduo naturalmente ultrapassa a si mesmo, seja quando pensa, seja quando age.
Se, a cada momento do tempo, os homens não se entendessem acerca das idéias (categorias) essenciais, toda concordância se tornaria impossível entre as inteligências e, por conseguinte, toda vida em comum.
A sociedade não pode abandonar as categorias ao livre arbítrio dos particulares sem se abandonar ela própria. Ela necessita de um conformismo moral e um lógico, sem os quais ela não poderia viver, por isso ela pesa com toda a sua autoridade sobre seus membros a fim de prevenir as dissidências. Por isso é que é muito difícil nos libertarmos daquelas noções fundamentais e conservar a nossa consciência individual. Algo resiste a nós, dentro e fora de nós. Fora de nós há a opinião que nos julga; dentro de nós por simplesmente sermos representativos da própria sociedade interiormente.
A sociedade é a manifestação mais elevada da natureza. O reino social é mais complexo que o reino natural, porém está contido nesse último.


Livro I
Questões preliminares

Capítulo I

Definição do Fenômeno Religioso e da Religião

Para definirmos religião é preciso que nos libertemos de toda idéia preconcebida.
Definições correntes: por comparação com todas as forma de religião, há um elemento em comum que consiste na “crença na onipresença de alguma coisa que vai além da inteligência”, conforme disse Spencer. Max Müller via em toda religião “um esforço para conhecer o inconcebível, para exprimir o inexprimível, uma aspiração ao infinito”. Mas essas noções são muito recentes na história da religião.

I

A idéia de sobrenatural, tal como a compreendemos, data de “ontem”. Mesmo os maiores pensadores da Antiguidade Clássica não chegaram a tomar plenamente consciência dela. É uma conquista das ciências positivas.
Antes de existir a idéia de sobrenatural, os acontecimentos mais maravilhosos nada possuíam que não parecessem perfeitamente concebíveis.
Foi a ciência, e não a religião, que ensinou aos homens que as coisas são complexas e difíceis de compreender.
Conforme Jevons: o espírito humano não tem necessidade de uma cultura propriamente científica para notar que existem entre os fatos seqüências determinadas, uma ordem constante de sucessão, e para observar, por outro lado, que essa ordem é freqüentemente perturbada. O sol se eclipsa bruscamente; a chuva falta na época em que é esperada; a lua demora a surgir após o seu desaparecimento periódico. Como estão fora do curso ordinário das coisas, esses acontecimentos são atribuídos a causas extraordinárias ou extranaturais. Assim surge a idéia de sobrenatural, objeto próprio do pensamento religioso.
Fato sobrenatural não se reduz ao imprevisto. É preciso que ele seja concebido como impossível ou inconciliável com a ordem natural das coisas. No entanto, a religião quase sempre não se preocupa com as monstruosidades ou anomalias, mas com a beleza e o mistério do Universo, bem como o habitual na natureza: o movimento dos astros, o ritmo das estações, o crescimento anual da vegetação, da perpetuidade das espécies, etc.
A noção do religioso está longe de coincidir com o extraordinário e do imprevisto. E essa concepção das forças religiosas não é primitiva.
A idéia de mistério é criação humana, limitada a um pequeno número de religiões avançadas. Portanto, não se pode utilizar o conceito de mistério como característica genérica das religiões.

II

Outra idéia para se tentar definir religião: divindade. Diz Réville: “A religião é a determinação da vida humana pelo sentimento de um vínculo que une o espírito humano ao espírito misterioso no qual reconhece a dominação sobre o mundo e sobre si mesmo, e ao qual ele quer sentir-se uno”.
Mas são divindades as almas dos mortos, os espíritos de toda espécie e de toda ordem ?
Diz Tylor: “O primeiro ponto essencial quando se trata de estudar sistematicamente as religiões das raças inferiores é definir e precisar o que se entende por religião. Se se continuar fazendo entender essa palavra como a crença numa divindade suprema... um certo número de tribos estará excluído do mundo religioso. Mas essa definição demasiada estreita tem o defeito de identificar a religião com alguns de seus movimentos particulares... Parece preferível colocar simplesmente como definição mínima da religião a crença em seres espirituais”.
Esses seres espirituais são seres conscientes como as almas dos mortos. E por procedimentos psicológicos trata-se de convencê-los, comovê-los, seja por meio de palavras (invocações ou preces), de oferendas ou sacrifícios.
Mas ter como objeto regular nossas relações com esses seres especiais, através de preces, sacrifícios, ritos propiciatórios, é um critério muito simples e extremamente restrito de se definir religião. Que dizer do Budismo que se apresenta, em oposição ao bramanismo, como diz Burnouf, como uma moral sem deus e um ateísmo sem natureza ?
O budismo é uma religião sem deus. O essencial no budismo é o que é conhecido por quatro nobres verdades: “a primeira coloca a existência da dor como ligada ao perpétuo fluxo das coisas; a segunda mostra no desejo a causa da dor; a terceira faz da supressão do desejo o único meio de suprimir a dor; a quarta enumera as três etapas pelas quais é preciso passar para chegar a essa supressão: a retidão, a meditação e, enfim, a sabedoria, a plena posse da doutrina. Atravessadas essas três etapas, chega-se ao término do caminho, à libertação, à salvação pelo Nirvana”.
“Algo bem diferente ocorre com o cristianismo, que, sem a idéia sempre presente e o culto sempre praticado de Cristo, é inconcebível; pois é o Cristo sempre vivo e a cada dia imolado que a comunidade dos fiéis continua a comunicar-se com a fonte suprema da vida espiritual”.
Tudo o que precede aplica-se igualmente a uma outra grande religião da Índia, o jainismo. Tendo Jaina como exemplo de perfeição a atingir, não admitem um Criador, consideram o universo eterno, sem início nem fim, apesar de em alguns locais se referirem a Jinapati como espécie de Jaina Supremo, adotando, portanto aspecto deísta como no cristianismo.
O germe do ateísmo contido tanto no budismo como no janaismo, aliás, já estava contido no Bramanismo, do qual se originaram.
“...mesmo no interior de religiões deístas encontramos um grande número de ritos que são completamente independentes de toda idéia de deus ou de seres espirituais”. Como a orientação bíblica judaica que ordena à mulher viver isolada todo mês durante um período determinado, assim como também durante o parto, não tendo a menor ligação com uma adoração a Jeová.
“E essas proibições não são particulares aos hebreus, mas as encontramos, sob formas diversas e com o mesmo caráter , em numerosas religiões”. “É verdade que esses ritos são puramente negativos; mas não deixam de ser religiosos”.
“Assim, há ritos sem deuses e, inclusive, há ritos dos quais derivam os deuses”. “Portanto, a religião vai além da idéia de deuses ou de espíritos, logo não pode se definir exclusivamente em função desta última”.

III

Durkheim descarta as definições anteriores e se posiciona: a religião é um todo formado de partes. É um sistema mais ou menos complexo, diz ele, formado de mitos, de dogmas, de ritos, de cerimoniais.
A definição do todo não pode ser definido senão em relação às parte que o formam. Por método, que se procure compreender a complexidade da religião começando pela sua manifestação mais simples, mais elementar.
Percebe-se no sincretismo uma forma de assimilação de religiões em decadência por outra em plena atividade.
Os fenômenos religiosos classificam-se em crenças e ritos. As crenças são opiniões sobre a profanidade ou a sacralidade de algo em questão; os ritos são modos de ação determinada, que através de sua função se reconhece o seu objetivo.
“... O sagrado e o profano foram sempre e em toda parte concebidos pelo espírito humano como gêneros separados, como dois mundos entre os quais nada existe em comum”.
“A coisa sagrada é, por excelência, aquela que o profano não deve e não pode impunemente tocar”.
“As coisas sagradas são aquelas que as proibições protegem e isolam; as coisas profanas, aquelas a que se aplicam essas proibições e que devem permanecer à distância das primeiras”.
Um conceito de religião: É o conjunto de crenças e ritos no qual determinado número de coisas sagradas mantêm entre si relações de coordenação e de subordinação, de maneira a formar um sistema dotado de uma certa unidade, mas que não participa ele próprio de nenhum outro sistema do mesmo gênero.

IV

Relação entre magia e religião: “Os seres que o mágico invoca, as forças que emprega não são apenas da mesma natureza que força e os seres aos quais se dirige a religião; com muita freqüência, são exatamente os mesmos”.
Mas há uma repugnância da religião pela magia e uma hostilidade da magia pela religião; a magia profana as coisas sagradas, a religião vê a magia com desagrado. Há, nos procedimentos do mágico, algo de anti-religioso, no dizer de Hubert e Mauss.
Contudo, entenda-se: “... o mágico está para a magia assim como o sacerdote para a religião, e um colégio de sacerdotes não é uma igreja, como tampouco o seria uma congregação religiosa que prestasse a algum santo, na sombra do claustro, um culto particular”. “Uma igreja não é simplesmente uma confraria sacerdotal; é a comunidade moral formada por todos os crentes de uma mesma fé, tanto os fiéis como os sacerdotes. Uma sociedade desse gênero normalmente não se verifica na magia”.
Também há as religiões individuais que o indivíduo institui para si mesmo e celebra por conta própria; como nas ilhas Banks o melanésio tem seu tamaniu; cada Ojibway tem seu manitu pessoal; o romano tem seu genius; o cristão católico tem seu padroeiro e seu anjo da guarda. Será que essas religiões individuais não estão destinadas a forma eminente da vida religiosa e se não chegará o dia em que não haverá outro culto senão aquele que cada um celebrará livremente em seu foro interior?
No entanto há que se reconhecer que essas religiões individuais não são senão aspectos das religiões coletivas.
“Podemos definir as religiões tais como são ou tais como foram, não tais como tendem mais ou menos vagamente a ser”.
Definição de religião: “uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem”.
A religião é, de fato, uma coisa eminentemente coletiva.



BIBLIOGRAFIA


DURKHEIM, É.. AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA – O SISTEMA TOTÊMICO NA AUSTRÁLIA. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


Jorge Pi

Resumo dos capítulos de XVIII a XX de "O Príncipe" de Maquiavel


Capítulo XVIII

De que forma os Príncipes devem guardar a fé

Em política, as grandes realizações nem sempre estão em conformidade com a palavra dada. Se é louvável a manutenção da fé, com integridade, em geral é preciso se utilizar da astúcia. Às vezes, deve-se usar da força ao invés das leis. Assim inicia Maquiavel este capítulo, mas também adverte que, ao Príncipe, convém usar com equilíbrio tanto uma como outra.
Nos ensinamentos dos antigos escritos, afirma, encontra-se Aquiles tendo como preceptor Quiron, metade homem e metade animal. Por alusão, isto significa que o Príncipe deve exercer ambas as naturezas: a de homem-animal assim como a de animal-homem, para governar com estabilidade.
Mas na natureza da besta há uma bi-complementaridade: o leão e a raposa. Há que se perceber que a raposa sucumbe aos lobos e, por sua vez, o leão aos laços. Por conseguinte, o Príncipe deveria ser uma Raposa-Leão ou um Leão-Raposa para ser bem sucedido em seu governo. Então, não guardar a palavra dada, por exemplo, quando a mesma for prejudicial ou já não mais houver razão de ser, redunda imprescindível.
Tudo porque os homens são pérfidos, afirma Maquiavel, e esta é uma perfeita justificativa à quebra da fé jurada pelo Príncipe. Por exemplo: Alexandre VI, que nunca fazia o que dizia, mas sempre foi bem sucedido.
Maquiavel também afirma que não é preciso o Príncipe possuir qualidades, mas somente aparentar possuí-las. Melhor parecer ser piedoso, fiel, humano, íntegro e religioso. Pois, ao tempo em que seja necessário não ser assim, achar-se-á rapidamente o ânimo de parecer tornar-se o contrário, por exigências circunstanciais.
Assim acontece sobremaneira com um Príncipe novo que nem sempre será um homem bom se quiser manter o governo. Aparentar sempre possuir aquelas virtudes, usando de dissimulação, inclusive a de religioso (a mais difícil delas). A aparência se evidencia à essência, ao vulgo.
No fim das contas, o que importa é se o êxito é bom ou mau. Então que seja bom, através dos meios passíveis de serem julgados honrosos e louvados por todos. Como exemplo, Maquiavel dá o de Fernando, o católico, que pregando a paz e a fé é inimigo acérrimo de um e de outro, usufruindo, no entanto, de íntegra reputação aos olhos do vulgo.

Capítulo XIX

De como se deve evitar o ser desprezado e odiado

Evitar ser odiado ou desprezado, ministra Maquiavel. Não vemos os defeitos daqueles a quem amamos.
Não ser rapace nem usurpar dos bens e das mulheres dos súditos, instrui, sabiamente, o italiano. Restaria, então, apenas a ambição de poucos, facilmente refreável.
Não ser, ou não deixar transparecer ser, volúvel, leviano, afeminado, pusilânime, irresoluto. Deve-se evitar tais defeitos à exposição pública, como um nauta evita um rochedo, lembra o bom conselheiro.
O Príncipe deve deixar serem reconhecidas, em suas ações, grandeza, coragem, gravidade e fortaleza. Em suas decisões e ações dirigidas aos súditos, constituir-se irrevogável e resoluto para não propiciar dúvida alguma quanto à firmeza de suas idéias e dirimir qualquer intenção de o ludibriar ou o fazer mudar de idéia. Com isso, consegue-se reputação. E contra quem é reputado e reverenciado pelos seus, dificilmente se conspira ou se ataca.
Maquiavel destaca duas razões de receio: de ordem interna, os súditos; de ordem externa, os poderosos de fora. Aos de fora, boas armas e bons aliados. Com boas armas, têm-se bons amigos. Aos de dentro, fazendo com que haja satisfação popular.
Quem conspira, conspira contra o Príncipe odiado, não o bem amado pelo povo.
Em um conspirador há apenas medo, inveja e suspeita de punição.
No Príncipe há a majestade, as leis, a defesa dos amigos e do Estado e, se tiver a estima popular, haverá também o antídoto aos conspiradores. Como exemplo: os Canneschi mortos e preteridos em razão de Messer Giovanni (à época, uma criança de colo). Razão: benquerença e benevolência popular para com a casa dos Bentivoglio, que entregou o governo do Estado a um jovem parente distante, filho de um ferreiro, até Messer Giovanni atingir idade suficiente para reinar.
Que são conspirações para um Príncipe amado pelo povo? O problema então é quando é odiado. Deve mesmo temer tudo e a todos, adverte Maquiavel. Solução: não desprezar os grandes e satisfazer e contentar o povo, como na França, por exemplo, onde o Parlamento refreia a ambição e a insolência dos poderosos e, protege o povo daqueles, tirando, providencialmente, o peso do descontentamento dos grandes que seria dirigido ao Príncipe.
O que não ocorria no Antigo Império Romano, onde além da ambição dos grandes e da insatisfação do povo havia uma terceira dificuldade: a crueldade e a rapacidade dos soldados, causa da ruína de muitos imperadores ricamente enumerados, analisados e, após uma digressão impecável, Maquiavel chega a uma conclusão: o ódio e o desprezo foram causa de ruína. Ademais, finaliza, genialmente, dizendo que um Príncipe novo deve aproveitar e utilizar as ações e qualidades necessárias e imprescindíveis para a fundação e manutenção do Estado.

Capítulo XX

Se as fortalezas e muitas outras coisas que dia a dia são feitas pelo Príncipe são úteis ou não

Dentre tantas ações e deliberações, há de se verificar que nunca um príncipe novo desarmou os seus súditos, mas, ao contrário, ao encontrá-los desarmados, armou-os. De suspeitos, os novos súditos hão de se tornar fiéis e auxiliares. E se, por dificuldade de armar e beneficiar a todos os súditos, os que não sejam agraciados hão de divisar a impossibilidade de generalização e ainda compreenderão, conformados, que quem presta serviço, estando exposto a maiores perigos, por direito, seja bem recompensado, e não reclamarão a sua parte.
Ao contrário, o desarmamento, por precaução, gera dúvida e descontentamento por estar implícita a falta de confiança depositada, confundida como covardia. Restando a milícia mercenária, contra súditos insatisfeitos além de eventual poderoso inimigo esterno, o que se demonstra claramente indesejável.
Ao conquistar um novo Estado, anexando-o aos domínios, urge desarmá-lo, exceto àqueles que colaboraram com a conquista, mesmo assim até certo tempo, quando então as armas, por completo, passariam para o exército do Estado antigo.
Jamais se permita que haja divisões em um principado poderoso, pois a grandeza de um Príncipe é medida através da superação das dificuldades e oposições que se lhe movam.
Com astúcia, o Príncipe sábio deve fomentar inimizades contra si mesmo, a fim de se engrandecer através da vitória contra esses mesmos inimigos.
Aqueles que, de início, em geral, demonstram-se suspeitos ao Príncipe recente, com o tempo, tornam-se confiáveis, pois precisam, para crescer, de apoio no governo e, assim, são conquistados com facilidade. Gratos, com redobrada diligência, esforçam-se por demonstrar reconhecimento incondicional, em detrimento das divergências iniciais. Diferente daqueles que, por segurança, não precisando provar nada, negligenciam os interesses do Príncipe.
Maquiavel também mostra que é mais fácil conquistar a amizade daqueles que estavam contentes com o regime antigo do que manter a simpatia dos que, por descontentamento, fizeram-se seus inimigos e ajudaram ao Príncipe na conquista do Estado.
Com sua lucidez característica, Maquiavel disse que o Príncipe que tiver mais medo do seu povo do que de estrangeiros, que construa fortalezas. Mas a melhor fortaleza que pode existir é não ser odiado por seu povo. Seguro, no interior de uma fortaleza, dos inimigos esternos, resta ainda a preocupação com o inimigo interno. Seguro no interior da fortaleza da benquerença popular, mesmo que a fortaleza de pedra vire pó, haverá real segurança e incondicional lealdade no coração dos súditos.


BIBLIOGRAFIA


MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução: Lívio Chavier. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores). Cap. XVIII a XX.


Jorge Pi

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Algumas Conexões Lógicas entre a Origem e o Retorno, em Avicena


Nascido em Afsana, perto da Bojara, na Pérsia, no ano de 980 (d.C.), Avicena (Ibn Sina) deu continuidade à tradição filosófica aristotélica, conservada e transmitida por Alquindi e, em especial, Alfarabi. Foi importante por ter sistematizado a especulação anterior, mas, sobremodo, por ter aprofundado algumas noções fundamentais daquele último. Uma delas consiste na noção de existência (esse), que ele considerava um acidente que se acrescenta à essência (quidditas). Uma outra se refere ao conceito da unidade do intelecto agente, que se torna possível mediante a ascensão da potência no entendimento ao ato; por sua vez, tornando possível o acesso à noção metafísica do ser, visto que constitui no objeto formal próprio de tal entendimento. Enfim, a noção que faz distinção entre a essência e a existência nos seres criados, no que diz respeito à sua união em Deus.

De religião islâmica, sendo considerado como uma das mais destacadas personalidades da filosofia árabe, Avicena era dono de uma pena infatigável, tendo escrito sobre matemática, medicina e, com reconhecida originalidade de pensamento, destacou-se por sua primorosa desenvoltura no trato com a Filosofia. Além de escrever sobre as Leis de Platão, a Isagoge de Porfírio e o Almagesto de Ptolomeu, foi comentador aplicado de Aristóteles, indo da Metafísica às Categorias, passando por De Anima, pela Física, pela Retórica, entre várias outras.

Considerado como um grande sábio, ou grande mestre, islâmico, quando contava apenas com 10 anos de idade, já era conhecedor da gramática, da teologia e, espantosamente, mesmo para um mulçumano, já sabia de cor, integralmente, o Alcorão. Seu primeiro mestre era matemático, tendo, assim, o privilégio de tomar conhecimento, logo no início dos seus estudos, dos Elementos de Euclides e um pouco de lógica.

Neste trabalho, procuraremos lançar um olhar focado em algumas conexões lógicas verificadas no tratado I do livro que Avicena escreveu no ano de 1001 para o seu discípulo Sirazi, intitulado “A Origem e o Retorno”, no qual ele discorre sobre a origem e o retorno da alma a Deus.

Salta aos olhos a clara independência com que Avicena desenvolve o conteúdo desta obra. Apenas na introdução (“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso” ) é que podemos nos aperceber de que se trata de um filósofo de origem mulçumana. A partir do primeiro capítulo, Avicena se liberta de sua origem religiosa e alça vôo às regiões da mais pura reflexão filosófica, numa atitude universalista, bem diversa de outros autores medievos ocidentais que sempre se expressavam sob o penoso crivo da influência dominadora do pensamento teológico-“filosófico” cristianizado.

Observamos que no primeiro capítulo (“Sobre o conhecimento do ser necessário e do ser possível” ), baseando-se na lógica modal de Aristóteles, o grande sábio estabelece os conceitos de ser necessário e ser possível, bem como o de necessário por si e por outro. Em suma: o ser necessário é necessário e o possível, não, tanto no ser como no não ser. Ou: tudo o que existe, ou não existe, é possível. E o que é possível, assim o é de três maneiras: primeiro, o que é necessário absolutamente; segundo, até um certo momento; terceiro, o que existe agora em ato, mas é capaz de, no futuro, existir e não existir. O termo possível é mais amplo que o termo necessário, pois se aplica ao necessário e também ao não necessário. Sendo assim, possível é tudo aquilo que, para poder existir, precisa de algo fora de si mesmo. Necessário é tudo aquilo que não requer nada para existir, pois está implícita em sua essência mesma a sua própria existência.

No segundo capítulo (“Sobre que o ser necessário não pode sê-lo simultaneamente por si mesmo e por intermédio de outro” ), justifica-se que o necessário por si não pode simultaneamente por si e por outro ou haveríamos de reconhecer o absurdo como plenamente absoluto e verdadeiro, o que não se verifica plausível e demonstrável.

No capítulo III (“Sobre que o ser necessário por intermédio de outro, é por si mesmo ser possível” ), Avicena nos faz ver que quando algo é necessário por intermédio de outro, aí se há de localizar o ser possível.

“Sobre que o ser possível por si mesmo, somente é ser necessário por intermédio de outro” , este é o título do quarto capítulo e nele somos convidados a examinar a reciprocidade com o que está contido no capítulo III. Há aí um claro esquema de redução ao absurdo e também a introdução da noção de causa. Em Aristóteles, temos a noção de causa classificada em quatro tipos: a causa eficiente, que é o princípio da mudança; a causa material, que é aquilo de que algo surge ou através do qual chega a ser; a causa formal, como sendo a idéia ou o paradigma, ou como a própria essência em que é antes de ter sido; e a causa final ou o fim, a finalidade, a realidade que algo tende a ser. Em síntese, pode-se inferir deste capítulo que quando o ser possível por si mesmo é ser necessário por intermédio de outro o é como efeito-causa de algo e não como causa propriamente dita.

No capítulo quinto (“Sobre que não é possível que de dois decorra um ser necessário, e nenhum dos dois é ser necessário por intermédio do outro, e não há no ser necessário pluralidade sob qualquer aspecto”) está mais uma vez demonstrado que não há compatibilidade verdadeira, como exposto no capítulo II, entre o ser necessário por si e o ser necessário por outro, e que o ser necessário não comporta pluralidade ou partes, sob quaisquer aspectos que sejam, e sim unicidade. Além disso, está evidenciado também neste capítulo que alguma coisa pode ser simultânea com outra e, apesar disso, ser-lhe anterior quanto à essencialidade (lançando-nos uma luz de entendimento sobre a relação existente entre causa e efeito, essência e existência).

O capítulo sexto (“Sobre que o ser necessário por si mesmo é ser necessário sob todos seus aspectos”) aponta para a tese de que o ser necessário por si mesmo é forçosamente necessário sob todos os aspectos, caso contrário, o ser necessário por si mesmo teria dois aspectos. Por um aspecto seria ser necessário e por outro seria ser possível, dependentes ambos de uma causa. O que nos levaria a uma contradição já que então o ser necessário por si mesmo dependeria de duas causas. Portanto, inferimos que o ser necessário não está sujeito a mudança, por ser completo e perfeito em si mesmo.

No capítulo sétimo (“Sobre que o ser necessário se intelige e é intelecto por si, e o esclarecimento de que toda forma que não está numa matéria também o é, e que o intelecto, o inteligente e o inteligido são um”), Avicena nos mostra que dentre os atributos do ser necessário está o ser intelecto, inteligente e inteligido. Separado da matéria, o ser necessário tem caráter inteligível e não sensível, ao tempo em que não é corpo e não está sujeito aos acidentes próprios dos cormos materiais. Também faz distinção entre o modo de operar do intelecto e a imaginação e a memória. Examina as possibilidades do intelecto em ato e conclui que o mesmo é a forma separada inteligível. E sintetiza: inteligente é o intelecto no ato de inteligir.
Eis o título do capítulo oitavo: “Sobre que o ser necessário é por si bem puro”. Nesse capítulo, o filósofo persa vai tratar sobre a bondade do ser necessário (o “bem” aristotélico). Confrontando com o conceito de mal como privação do bem, Avicena retoma o noeplatonismo, além de pincelar a noção de bem como útil e difusivo de si mesmo.

No capítulo nono (“Sobre que o ser necessário é por si verdade pura”), através da combinação da noção platônica da verdade enquanto propriedade das coisas com uma noção aristotélica de uma propriedade do conhecimento.

Eis o que vem como título, no capítulo dez: “Sobre como a espécie do ser necessário não se predica de muitos. Por isso sua essência é completa” . Em razão de a espécie do ser necessário não ser plural, por isso mesmo ele não tem nem semelhante nem contrário. Deve-se lembrar que, no capítulo V, Avicena já estabelece a unicidade do ser necessário, sendo este capítulo baseado neste aspecto àquele citado acima.

Capítulo onze: “Sobre que o ser necessário é único sob vários aspectos e a prova de que não é possível que haja dois seres necessários” . Mais uma vez, a unicidade é evidenciada. Neste longo capítulo, Avicena estabelece a tese de que é impossível que a necessidade de ser seja comum, utilizando como recurso argumentativo os habituais dilemas e reduções ao absurdo. Chega à conclusão de que o ser necessário é uno, quanto à espécie, ao número, à indivisibilidade, à perfeição, mas também em razão de que seu ser não é por outro, mesmo que este outro não seja propriamente de seu gênero.

No capítulo XII (“Sobre que ele por si é amável e amante, deleitável e deleitante e que o deleite é a percepção do bem adequado”), o ser necessário é apresentado como beleza e esplendor puros.

Adentramos então no capítulo XIII (intitulado: “Sobre como o ser necessário intelige a si mesmo e as coisas”), importante justamente por nos revelar algo precioso: o ser necessário não intelige as coisas a partir das próprias coisas, com o inteligir como operação acidental; mas sim através de sua própria essência, já que é o princípio de todos os seres completos (incorruptíveis) ou não.

Capítulo XIV: “Sobre a confirmação da unicidade do ser necessário no sentido de que sua ciência não é diferente de seu poder, de sua vontade, de sua sabedoria e de sua vida quanto ao que é entendido, mas tudo isto é um só, e a pura unidade de sua essência não é dividida por nada disso”. Aqui, Avicena trata da unidade real dos atributos do ser necessário e da pluralidade desses mesmos atributos, no que se refere ao nosso conhecimento direto deles. A ciência (ou o conhecimento) na vontade do ser necessário é a sua própria vontade de também o seu próprio poder. Sua vontade difere da nossa, pois precisamos de várias faculdades para realizar o que nos cabe. Assim, sua unidade pura não é dividida por nada.

No capítulo XV (“Sobre a confirmação do ser necessário”), Avicena conclui o que escrevera até aí. Confirma a necessidade da existência do ser necessário e afirma que o ser possível tem como fundamento último o próprio ser necessário.

É impossível a cada ser possível ter junto de si uma causa também possível. Esse é o argumento central contido no capítulo XVI (“Que cada ser possível não pode ter junto a ele uma causa possível até o infinito”). Também é dito que o ser necessário não pode ser constituído por seres possíveis.

No capítulo XVII (“Não é possível que os seres possíveis sejam causa um do outro de maneira circular e num mesmo tempo, mesmo que seu número seja finito”), Avicena considera sobre se o encadeamento das causas sempre volta ao ponto de partida e chega à conclusão de que isto não é possível pois, se o fosse, cada um seria causa de si mesmo e efeito de seu próprio ser.

Capítulo XVIII: “Dedicação à confirmação do ser necessário, e o esclarecimento de que os [entes] que começam a ser, começam a ser pelo movimento. Entretanto, necessitam de causas permanentes e o esclarecimento das causas motrizes próximas e que todas são variáveis” . Sendo imprescindível que haja uma coisa que seja ser necessário, em razão de que se todos os seres fossem seres possíveis, haveria a possibilidade de terem começado ou não a existir; então, tem de haver uma causa necessária e certa no primeiro princípio, tendo fincado raízes neste, porém com possibilidade de continuidade como fruto do movimento do qual fora gerado e que precisa da sucessão ininterrupta de instantes a se prefigurarem no tempo.

No capítuloXIX (“Sobre o esclarecimento de que a permanência de cada ser que começa a ser é por intermédio de uma causa, uma premissa. Para ser auxiliar ao próximo mencionado anteriormente”), vemos um argumento apontando para a necessidade de uma causa para a permanência do ser (através de uma causa necessária). O ser possível depende de outro quanto ao ser (de uma causa). O começar a ser advém da causa mesma pois é ser possível e, assim, poderia não começar a ser. Avicena diz que dispor o não-ser como condição para que o possível seja verdadeiro não é correto, pois o não-ser é aquele aquilo que sucede e permanece com o possível em certas formas de existir (não-sendo). Desta forma, ele argumenta para fins de evidenciar a necessidade de uma causa para a permanência e a razão de ser dos seres causados.

“Sobre que os começos dos seres engendrados levam às causas que movem com movimento circular, premissa, portanto, sobre como se move a natureza e que ela se move por causas às quais se une e como começa a ser” : este é o título do capítulo XX. Nele, Avicena argumenta a respeito do movimento natural. Sucintamente, ele se dá a partir de uma disposição inadequada para uma disposição adequada.

O capítulo XXI se intitula: “Uma outra premissa: o que se move pela vontade é de essência variável e como resulta sua variação” . Ter essência variável pré-estabelece assim o movimento cuja causa primeira é um desdobramento voluntário e universal sob o impulso de uma imaginação permanente.

“Que a distinção de disposições começa a partir da força violenta quando move” (capítulo XXII). Movimento violento: irresistibilidade é a tônica e impulsão atualizada é a ação motora.

No capítulo XXIII, Avicena fala “Sobre a totalidade dos atributos do Ser Necessário” . Resumindo e agrupando a totalidade dos atributos do ser necessário, ele relembra que algo é necessariamente o ser necessário, não tendo sua existência por intermédio de outro. E que a vida, a ciência e o poder do ser necessário são uma só coisa.

No capítulo seguinte (XXIV), Avicena faz-nos recordar da confirmação indubitável do ser necessário pela via do possível e do necessário. Agora aborda a via do movimento ao estabelecer que não há como provar o porquê da primeira causa, pois ela é incriada. E intitula assim o capítulo: “Indicação de qual é este sistema de exposição, repetição do sistema habitual. Explicação da diferença entre a via que passou e a via que começa” .

Por fim, vejamos o que Avicena tem a nos dizer no capítulo XXV, intitulado “Sobre a confirmação do motor imóvel de todo movimento” . Nele, podemos vislumbrar a tese de que há uma causa de movimento para todo corpo que se move, observável facilmente nas causas externas (como quando algo é arrastado). Porém existem os casos em que não se pode enxergar a ação de um motor externo. E, no entanto, corpo não implica nem repouso nem movimento, por si mesmo. Mas é apenas em uma direção e em somente um sentido que o deslocamento se manifesta. Sendo assim, em tudo e em toda e qualquer região do que se concebe como espaço há a ação única em momentos e presenças diversas do motor imóvel, igualmente único e presente em tudo.

Portanto, em Avicena a lógica aristotélica, em sua mais pura e rigorosa demonstração, submete as mais ousadas reverberações do espírito humano, ao tender seu entendimento racional para a confirmação do princípio primeiro de tudo, bem como sua irrefutável unicidade e seus atributos peculiarmente verdadeiros. E, num encadeamento cuidadoso perpassado de lucidez, vai se construindo um edifício conceitual capaz de tangenciar a possibilidade do ser possível adentrar na estrutura colossal do necessário ser.

Jorge Pi



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


ISKANDAR, J. I. Avicena – a Origem e o Retorno. Porto Alegre: EDPUCRS, 1999.
MORA, J. F. Dicionário de Filosofia – Tomo I. São Paulo: Edições Loyola, 2000.