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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Algumas Conexões Lógicas entre a Origem e o Retorno, em Avicena


Nascido em Afsana, perto da Bojara, na Pérsia, no ano de 980 (d.C.), Avicena (Ibn Sina) deu continuidade à tradição filosófica aristotélica, conservada e transmitida por Alquindi e, em especial, Alfarabi. Foi importante por ter sistematizado a especulação anterior, mas, sobremodo, por ter aprofundado algumas noções fundamentais daquele último. Uma delas consiste na noção de existência (esse), que ele considerava um acidente que se acrescenta à essência (quidditas). Uma outra se refere ao conceito da unidade do intelecto agente, que se torna possível mediante a ascensão da potência no entendimento ao ato; por sua vez, tornando possível o acesso à noção metafísica do ser, visto que constitui no objeto formal próprio de tal entendimento. Enfim, a noção que faz distinção entre a essência e a existência nos seres criados, no que diz respeito à sua união em Deus.

De religião islâmica, sendo considerado como uma das mais destacadas personalidades da filosofia árabe, Avicena era dono de uma pena infatigável, tendo escrito sobre matemática, medicina e, com reconhecida originalidade de pensamento, destacou-se por sua primorosa desenvoltura no trato com a Filosofia. Além de escrever sobre as Leis de Platão, a Isagoge de Porfírio e o Almagesto de Ptolomeu, foi comentador aplicado de Aristóteles, indo da Metafísica às Categorias, passando por De Anima, pela Física, pela Retórica, entre várias outras.

Considerado como um grande sábio, ou grande mestre, islâmico, quando contava apenas com 10 anos de idade, já era conhecedor da gramática, da teologia e, espantosamente, mesmo para um mulçumano, já sabia de cor, integralmente, o Alcorão. Seu primeiro mestre era matemático, tendo, assim, o privilégio de tomar conhecimento, logo no início dos seus estudos, dos Elementos de Euclides e um pouco de lógica.

Neste trabalho, procuraremos lançar um olhar focado em algumas conexões lógicas verificadas no tratado I do livro que Avicena escreveu no ano de 1001 para o seu discípulo Sirazi, intitulado “A Origem e o Retorno”, no qual ele discorre sobre a origem e o retorno da alma a Deus.

Salta aos olhos a clara independência com que Avicena desenvolve o conteúdo desta obra. Apenas na introdução (“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso” ) é que podemos nos aperceber de que se trata de um filósofo de origem mulçumana. A partir do primeiro capítulo, Avicena se liberta de sua origem religiosa e alça vôo às regiões da mais pura reflexão filosófica, numa atitude universalista, bem diversa de outros autores medievos ocidentais que sempre se expressavam sob o penoso crivo da influência dominadora do pensamento teológico-“filosófico” cristianizado.

Observamos que no primeiro capítulo (“Sobre o conhecimento do ser necessário e do ser possível” ), baseando-se na lógica modal de Aristóteles, o grande sábio estabelece os conceitos de ser necessário e ser possível, bem como o de necessário por si e por outro. Em suma: o ser necessário é necessário e o possível, não, tanto no ser como no não ser. Ou: tudo o que existe, ou não existe, é possível. E o que é possível, assim o é de três maneiras: primeiro, o que é necessário absolutamente; segundo, até um certo momento; terceiro, o que existe agora em ato, mas é capaz de, no futuro, existir e não existir. O termo possível é mais amplo que o termo necessário, pois se aplica ao necessário e também ao não necessário. Sendo assim, possível é tudo aquilo que, para poder existir, precisa de algo fora de si mesmo. Necessário é tudo aquilo que não requer nada para existir, pois está implícita em sua essência mesma a sua própria existência.

No segundo capítulo (“Sobre que o ser necessário não pode sê-lo simultaneamente por si mesmo e por intermédio de outro” ), justifica-se que o necessário por si não pode simultaneamente por si e por outro ou haveríamos de reconhecer o absurdo como plenamente absoluto e verdadeiro, o que não se verifica plausível e demonstrável.

No capítulo III (“Sobre que o ser necessário por intermédio de outro, é por si mesmo ser possível” ), Avicena nos faz ver que quando algo é necessário por intermédio de outro, aí se há de localizar o ser possível.

“Sobre que o ser possível por si mesmo, somente é ser necessário por intermédio de outro” , este é o título do quarto capítulo e nele somos convidados a examinar a reciprocidade com o que está contido no capítulo III. Há aí um claro esquema de redução ao absurdo e também a introdução da noção de causa. Em Aristóteles, temos a noção de causa classificada em quatro tipos: a causa eficiente, que é o princípio da mudança; a causa material, que é aquilo de que algo surge ou através do qual chega a ser; a causa formal, como sendo a idéia ou o paradigma, ou como a própria essência em que é antes de ter sido; e a causa final ou o fim, a finalidade, a realidade que algo tende a ser. Em síntese, pode-se inferir deste capítulo que quando o ser possível por si mesmo é ser necessário por intermédio de outro o é como efeito-causa de algo e não como causa propriamente dita.

No capítulo quinto (“Sobre que não é possível que de dois decorra um ser necessário, e nenhum dos dois é ser necessário por intermédio do outro, e não há no ser necessário pluralidade sob qualquer aspecto”) está mais uma vez demonstrado que não há compatibilidade verdadeira, como exposto no capítulo II, entre o ser necessário por si e o ser necessário por outro, e que o ser necessário não comporta pluralidade ou partes, sob quaisquer aspectos que sejam, e sim unicidade. Além disso, está evidenciado também neste capítulo que alguma coisa pode ser simultânea com outra e, apesar disso, ser-lhe anterior quanto à essencialidade (lançando-nos uma luz de entendimento sobre a relação existente entre causa e efeito, essência e existência).

O capítulo sexto (“Sobre que o ser necessário por si mesmo é ser necessário sob todos seus aspectos”) aponta para a tese de que o ser necessário por si mesmo é forçosamente necessário sob todos os aspectos, caso contrário, o ser necessário por si mesmo teria dois aspectos. Por um aspecto seria ser necessário e por outro seria ser possível, dependentes ambos de uma causa. O que nos levaria a uma contradição já que então o ser necessário por si mesmo dependeria de duas causas. Portanto, inferimos que o ser necessário não está sujeito a mudança, por ser completo e perfeito em si mesmo.

No capítulo sétimo (“Sobre que o ser necessário se intelige e é intelecto por si, e o esclarecimento de que toda forma que não está numa matéria também o é, e que o intelecto, o inteligente e o inteligido são um”), Avicena nos mostra que dentre os atributos do ser necessário está o ser intelecto, inteligente e inteligido. Separado da matéria, o ser necessário tem caráter inteligível e não sensível, ao tempo em que não é corpo e não está sujeito aos acidentes próprios dos cormos materiais. Também faz distinção entre o modo de operar do intelecto e a imaginação e a memória. Examina as possibilidades do intelecto em ato e conclui que o mesmo é a forma separada inteligível. E sintetiza: inteligente é o intelecto no ato de inteligir.
Eis o título do capítulo oitavo: “Sobre que o ser necessário é por si bem puro”. Nesse capítulo, o filósofo persa vai tratar sobre a bondade do ser necessário (o “bem” aristotélico). Confrontando com o conceito de mal como privação do bem, Avicena retoma o noeplatonismo, além de pincelar a noção de bem como útil e difusivo de si mesmo.

No capítulo nono (“Sobre que o ser necessário é por si verdade pura”), através da combinação da noção platônica da verdade enquanto propriedade das coisas com uma noção aristotélica de uma propriedade do conhecimento.

Eis o que vem como título, no capítulo dez: “Sobre como a espécie do ser necessário não se predica de muitos. Por isso sua essência é completa” . Em razão de a espécie do ser necessário não ser plural, por isso mesmo ele não tem nem semelhante nem contrário. Deve-se lembrar que, no capítulo V, Avicena já estabelece a unicidade do ser necessário, sendo este capítulo baseado neste aspecto àquele citado acima.

Capítulo onze: “Sobre que o ser necessário é único sob vários aspectos e a prova de que não é possível que haja dois seres necessários” . Mais uma vez, a unicidade é evidenciada. Neste longo capítulo, Avicena estabelece a tese de que é impossível que a necessidade de ser seja comum, utilizando como recurso argumentativo os habituais dilemas e reduções ao absurdo. Chega à conclusão de que o ser necessário é uno, quanto à espécie, ao número, à indivisibilidade, à perfeição, mas também em razão de que seu ser não é por outro, mesmo que este outro não seja propriamente de seu gênero.

No capítulo XII (“Sobre que ele por si é amável e amante, deleitável e deleitante e que o deleite é a percepção do bem adequado”), o ser necessário é apresentado como beleza e esplendor puros.

Adentramos então no capítulo XIII (intitulado: “Sobre como o ser necessário intelige a si mesmo e as coisas”), importante justamente por nos revelar algo precioso: o ser necessário não intelige as coisas a partir das próprias coisas, com o inteligir como operação acidental; mas sim através de sua própria essência, já que é o princípio de todos os seres completos (incorruptíveis) ou não.

Capítulo XIV: “Sobre a confirmação da unicidade do ser necessário no sentido de que sua ciência não é diferente de seu poder, de sua vontade, de sua sabedoria e de sua vida quanto ao que é entendido, mas tudo isto é um só, e a pura unidade de sua essência não é dividida por nada disso”. Aqui, Avicena trata da unidade real dos atributos do ser necessário e da pluralidade desses mesmos atributos, no que se refere ao nosso conhecimento direto deles. A ciência (ou o conhecimento) na vontade do ser necessário é a sua própria vontade de também o seu próprio poder. Sua vontade difere da nossa, pois precisamos de várias faculdades para realizar o que nos cabe. Assim, sua unidade pura não é dividida por nada.

No capítulo XV (“Sobre a confirmação do ser necessário”), Avicena conclui o que escrevera até aí. Confirma a necessidade da existência do ser necessário e afirma que o ser possível tem como fundamento último o próprio ser necessário.

É impossível a cada ser possível ter junto de si uma causa também possível. Esse é o argumento central contido no capítulo XVI (“Que cada ser possível não pode ter junto a ele uma causa possível até o infinito”). Também é dito que o ser necessário não pode ser constituído por seres possíveis.

No capítulo XVII (“Não é possível que os seres possíveis sejam causa um do outro de maneira circular e num mesmo tempo, mesmo que seu número seja finito”), Avicena considera sobre se o encadeamento das causas sempre volta ao ponto de partida e chega à conclusão de que isto não é possível pois, se o fosse, cada um seria causa de si mesmo e efeito de seu próprio ser.

Capítulo XVIII: “Dedicação à confirmação do ser necessário, e o esclarecimento de que os [entes] que começam a ser, começam a ser pelo movimento. Entretanto, necessitam de causas permanentes e o esclarecimento das causas motrizes próximas e que todas são variáveis” . Sendo imprescindível que haja uma coisa que seja ser necessário, em razão de que se todos os seres fossem seres possíveis, haveria a possibilidade de terem começado ou não a existir; então, tem de haver uma causa necessária e certa no primeiro princípio, tendo fincado raízes neste, porém com possibilidade de continuidade como fruto do movimento do qual fora gerado e que precisa da sucessão ininterrupta de instantes a se prefigurarem no tempo.

No capítuloXIX (“Sobre o esclarecimento de que a permanência de cada ser que começa a ser é por intermédio de uma causa, uma premissa. Para ser auxiliar ao próximo mencionado anteriormente”), vemos um argumento apontando para a necessidade de uma causa para a permanência do ser (através de uma causa necessária). O ser possível depende de outro quanto ao ser (de uma causa). O começar a ser advém da causa mesma pois é ser possível e, assim, poderia não começar a ser. Avicena diz que dispor o não-ser como condição para que o possível seja verdadeiro não é correto, pois o não-ser é aquele aquilo que sucede e permanece com o possível em certas formas de existir (não-sendo). Desta forma, ele argumenta para fins de evidenciar a necessidade de uma causa para a permanência e a razão de ser dos seres causados.

“Sobre que os começos dos seres engendrados levam às causas que movem com movimento circular, premissa, portanto, sobre como se move a natureza e que ela se move por causas às quais se une e como começa a ser” : este é o título do capítulo XX. Nele, Avicena argumenta a respeito do movimento natural. Sucintamente, ele se dá a partir de uma disposição inadequada para uma disposição adequada.

O capítulo XXI se intitula: “Uma outra premissa: o que se move pela vontade é de essência variável e como resulta sua variação” . Ter essência variável pré-estabelece assim o movimento cuja causa primeira é um desdobramento voluntário e universal sob o impulso de uma imaginação permanente.

“Que a distinção de disposições começa a partir da força violenta quando move” (capítulo XXII). Movimento violento: irresistibilidade é a tônica e impulsão atualizada é a ação motora.

No capítulo XXIII, Avicena fala “Sobre a totalidade dos atributos do Ser Necessário” . Resumindo e agrupando a totalidade dos atributos do ser necessário, ele relembra que algo é necessariamente o ser necessário, não tendo sua existência por intermédio de outro. E que a vida, a ciência e o poder do ser necessário são uma só coisa.

No capítulo seguinte (XXIV), Avicena faz-nos recordar da confirmação indubitável do ser necessário pela via do possível e do necessário. Agora aborda a via do movimento ao estabelecer que não há como provar o porquê da primeira causa, pois ela é incriada. E intitula assim o capítulo: “Indicação de qual é este sistema de exposição, repetição do sistema habitual. Explicação da diferença entre a via que passou e a via que começa” .

Por fim, vejamos o que Avicena tem a nos dizer no capítulo XXV, intitulado “Sobre a confirmação do motor imóvel de todo movimento” . Nele, podemos vislumbrar a tese de que há uma causa de movimento para todo corpo que se move, observável facilmente nas causas externas (como quando algo é arrastado). Porém existem os casos em que não se pode enxergar a ação de um motor externo. E, no entanto, corpo não implica nem repouso nem movimento, por si mesmo. Mas é apenas em uma direção e em somente um sentido que o deslocamento se manifesta. Sendo assim, em tudo e em toda e qualquer região do que se concebe como espaço há a ação única em momentos e presenças diversas do motor imóvel, igualmente único e presente em tudo.

Portanto, em Avicena a lógica aristotélica, em sua mais pura e rigorosa demonstração, submete as mais ousadas reverberações do espírito humano, ao tender seu entendimento racional para a confirmação do princípio primeiro de tudo, bem como sua irrefutável unicidade e seus atributos peculiarmente verdadeiros. E, num encadeamento cuidadoso perpassado de lucidez, vai se construindo um edifício conceitual capaz de tangenciar a possibilidade do ser possível adentrar na estrutura colossal do necessário ser.

Jorge Pi



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


ISKANDAR, J. I. Avicena – a Origem e o Retorno. Porto Alegre: EDPUCRS, 1999.
MORA, J. F. Dicionário de Filosofia – Tomo I. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

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