.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O Conflito das Liberdades


Conforme Regis de Morais, Agostinho se apropriou das conclusões gregas a respeito da concepção de liberdade política, ampliando-lhes radicalmente o significado.
Em Aristóteles já há uma teoria da vontade extremamente complexa e bem-elaborada. Ele associa a questão da ação com o problema da vontade e propõe uma série de explicações. O estagirita define o ato “involuntário” como aquele que é praticado sem que o agente conheça a causa externa que o determina; bem como estabelece que todo ato “voluntário” pressupõe certo conhecimento. Assim, chega a implicações éticas atreladas, no entanto, à idéia de que a vontade é exercida através de ações que se desenrolam na “polis” e o bem visado confunde-se com o bem de todos. Não existindo ainda a associação entre vontade e o que posteriormente veio a ser conhecido como consciência. No entanto, ele não fala nem de liberdade e nem de livre arbítrio, a não ser uma liberdade atrelada a um conceito político numa dimensão de coletividade e jamais mergulhada na individualidade.
Como uma “descoberta” agostiniana, a liberdade da vontade recebeu outro nome: “liberum arbitrium” – como uma manifestação da vontade que coloca o homem em contato com suas faculdades interiores, sem levar em conta o mundo político, para vir a ser vivida.
O bispo de Hipona percebeu diferença entre “querer” e “poder”, ao contatar que quando se decide fazer algo, ainda que não seja dada seqüência ao “querer”, mesmo assim já se praticou uma ação, através da “intenção” implícita e inegavelmente real. Então, a separação entre “querer” e “poder” constitui o rompimento com a teoria aristotélica da ação.
Para Agostinho, o objetivo da vida humana é a verdade, ou seja, Deus. Discernindo a existência do “homem exterior”, ligado ao mundo sensível, e o “homem interior”, como essência da natureza humana, ele percebera a necessidade de resistir às tentações do corpo, para atingir a beatitude e reconhecer na corporeidade não um mero “acidente” em nossas vidas. De tal forma que, sabendo que a diferença apontada acima quanto à natureza dos dois “homens” é meramente analítica, é preciso também entender que, se assim o é, deve-se justamente a que a ação é uma condição fundamental da contemplação. Ou seja, a vida ativa deve se submeter às exigências da vida contemplativa. Apesar de que, muitas vezes, desejando ardorosamente o bem, podemos cometer os piores erros. Pois, se na escolha da vontade existe clareza, não há garantia quanto à limpidez do caminho.
Ademais, analisando o problema do mal, Agostinho o considera como um fenômeno que diz respeito ao exercício da vontade, cuja fonte está na própria vida interior. Mas também nos diz que a vontade tem, de igual modo, em suas mãos, as chaves de nossa felicidade. O homem feliz, então, seria aquele que ama a “vontade boa” ou o desejo de viver corretamente com honestidade.
Ao concluir que o livre-arbítrio é a origem dos nossos pecados, Santo Agostinho também demonstra que a vontade livre é um presente da bondade divina; que tal vontade sempre deseja o bem, mas se o faz de maneira imperfeita, ocorre a falta.
Então, seu gênio nos presenteia com a idéia de que existe uma vontade que é sempre capaz de visar o Bem e de atingi-lo. Ele a chama de Graça. Donde pode-se divisar, conforme Etienne Gilson, a liberdade, enquanto estado daquele que, como antes da “queda”, está em sintonia com o Bem, através da Graça; e o livre-arbítrio, como capacidade de escolher e, portanto, de pecar.
No espaço político, aquele que foi escolhido pela Graça, no entanto, alei encontra condições para buscar a paz e gozar o Bem, no meio dos homens.
Os primeiros cristãos enxergavam a cidade dos homens como um instrumento repressivo, produto da própria situação dos homens. Em sua época, Agostinho também tem uma visão negativa do Estado, mas, num tempo em que a própria Igreja se defronta com a questão crucial do poder temporal, ele é levado a perceber que as fórmulas anteriores de recusa da vida política já não mais eram adequadas à sua época. É então que propõe uma teologia política que, partindo de conceitos teológicos, desse conta do desafio ao qual estava confrontado o pensamento cristão. Em decorrência, vemos que a política, bem como a cidade, perdem a importância que tinham no mundo antigo.
No plano teórico, Agostinho constrói duas cidades: a de Deus e a dos homens. Ao fazê-lo, buscava influenciar de maneira decisiva o pensamento político dos séculos seguintes.
Sucintamente, a cidade de Deus seria uma comunidade fora do tempo, dedicada ao amor, em nada relacionada às instituições humanas. Sem um signo visível, constituir-se-ia numa referência fundamental, distante, no entanto, da capacidade de compreensão racional dos desígnios divinos. Por sua vez, a cidade terrestre, com contornos definidos, claramente identificava-se como um Estado que torna suportável a vida dos eleitos de Deus; muito embora não fosse capaz de mudar a natureza humana, seria, todavia, capaz de dominá-la.
No fundo, Agostinho nunca se libertou de uma visão pessimista do Estado. Via a relação entre a Igreja e o Estado como marcada por forte e inevitável tensão. É somente com Santo Tomás de Aquino, faz-nos ver, por fim, Regis de Morais, que renasce a possibilidade de se pensar a dimensão puramente política da liberdade, sendo então um precursor da filosofia política renascentista.



Fonte:


MORAIS, Regis de. Estudos de Filosofia da Cultura, Coleção Filosofia. O Conflito das Liberdades: Santo Agostinho. Belo Horizonte. Edições Loyola, 1992, pp. 327-359.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Como conduzir homogeneamente os sujeitos



Consideremos as duas citações abaixo, explicitando a problemática da educação de encontrar um modo de conduzir homogeneamente os sujeitos.


“Expressando-o de modo sucinto, existem duas característica humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões”.

(...)

“Mas, pela mesma razão, as limitações da capacidade de educação do homem estabelecem limites à efetividade de uma transformação desse tipo na cultura. Pode-se perguntar se, em que grau, seria possível a um ambiente cultural diferente passar sem as duas características das massas humanas que tornam tão difícil a orientação dos assuntos humanos”.

(Freud, “O Futuro de uma ilusão”, p. 18)


Breve Comentário:

No início do seu texto “O Futuro de uma Ilusão”, Freud nos adverte que, ao indagar quais as origens de uma civilização específica, somos tentados a questionar pelo destino que a espera. Porém, faz-se necessário perceber que “o valor de uma indagação desse tipo é diminuído” (...) “sobretudo pelo fato de apenas poucas pessoas poderem abranger a atividade humana em toda a sua amplitude”. [1]
Ora, o conhecimento do presente e do passado é diretamente proporcional à possibilidade da emissão de um juízo sobre o futuro. E quase sempre é de maneira ingênua que as pessoas experimentam seu presente, não sendo capazes mesmo de estimar com precisão o seu conteúdo. Para isso seria necessário um certo distanciar-se a fim de que, numa perspectiva de passado, pudesse o presente servir de base para a antevisão sobre o que há de vir.
Mesmo Sigmund Freud flagrou-se em tal condição, por ocasião do 50° aniversário da escola na qual houvera estudado em sua juventude, quando fora convidado a compor uma redação alusiva à instituição de suas lembranças pueris. Naquela época distante, como os seus demais colegas, nutria uma visão e uma interpretação do mundo dos homens que consistia numa obnumbilada constatação da necessidade, a contragosto, de disciplina e adaptação àquele ambiente que se configurava, com muita facilidade, como uma continuidade das ‘imagos’ (imagens) da primeira infância, na casa paterna.
A figura do ‘pai’, que já havia perdido o impacto da associação com um super-homem, fora substituída pela figura do professor. Os seus colegas, por sua vez, como que preenchiam a ausência dos seus próprios irmãos. Assim, de seu mundo doméstico, passara a interagir em um mundo maior, visando tomar rumo para o mundo dos homens.
O curioso é que Freud, em sua maturidade, ao se encontrar com os seus velhos mestres nas ruas de Viena, ficava perplexo ao perceber que a diferença de idade entre ambos era diminuta e sua própria avaliação da ‘qualidade’ essencial daqueles, equivocada.
Subliminarmente, podemos refletir o quanto é forte e dominador todo o processo de estruturação e adaptação de mundo diante dos quais nos deparamos para largarmos nossa natural situação de animalidade e nos constituirmos em seres humanos.
Em síntese, de seres repletos de envolvimento e intimidade com uma imobilizante atividade de busca pela satisfação de inúmeras necessidades de realizações prazerosas, somos compulsoriamente conduzidos a uma via de mão única com destino certo à racionalidade cerceadora e, paradoxalmente, composta de igualmente fascinantes possibilidades de exacerbação pulsional, agora, porém artificialmente comprimida a uma subjetividade devidamente contida e presumivelmente regrada.
A civilização humana, fruto de um construto das sucessivas gerações, redundando na elevação da vida humana bem acima da condição animal, deve muito à capacidade de extrair e transformar tudo que é necessário à sobrevivência da espécie, em forma de riqueza, e à regulamentação das relações dos indivíduos entre si, bem como à problemática distribuição desta riqueza.
Porém, o trabalho extrativista humano, bem como a regulamentação de seus efeitos entre os indivíduos, são interdependentes, uma vez que a satisfação pulsional da obtenção de riquezas, a dominação do homem sobre o homem e a aversão latente do indivíduo pela própria civilização, geram um perene estado de tensão (propiciador, no entanto, de uma estável e desejada continuidade).
E, neste sentido, é preciso concordar com o que escreveu Freud:
“A civilização, portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa. Visam não apenas a efetuar uma certa distribuição da riqueza, mas também a manter essa distribuição; na verdade têm de proteger contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a conquista da natureza e a produção de riqueza”.[2]

Como a civilização representa e consolida a imposição de um esquema de procedimentos a uma maioria por uma minoria detentora de poder, resta-nos compreender a necessidade da coerção e da censura às pulsões; pois, de qualquer forma, se assim não fosse, a maioria dos seres humanos, de per si, não estaria preparada para a labuta promovedora de novas riquezas.
Ademais, no cerne de cada ser humano há, decerto, tendências destrutivas, anti-sociais e anticulturais, chegando mesmo a dominar um grande número de indivíduos em toda parte do mundo e em cada momento da história.
Então, não é apenas o aspecto material que se denuncia como gravemente perturbador e enfático, mas o mental também. Desta forma, torna-se impossível evitar o controle das massas por uma minoria, como o é eliminar a coerção no trabalho civilizatório, dada a abundância de uma inercial indolência e de uma natural apatia diante de todos os argumentos contrários ao fascínio das paixões e indisciplinas de toda sorte.
Somente mediante a influência de líderes exemplares, condutores e indutores, é que se pode ser observado nas massas o impulso para a rendição ao trabalho e a contrita aceitação da renúncia ao que lhe vem como tendência naturalmente prazerosa.
Mas é sumamente necessário que esses líderes sejam providos de uma luz interna, intuitiva, que os façam agir com empatia, em conformidade com as necessidades da vida, além de terem atingido um bom grau de autodomínio. Apesar de que o fantasma da vaidade está sempre à espreita e corriqueiramente se revela disposto a lhe propor, com inegável e eficiente sedução, a troca do domínio dos seus próprios desejos pela cega simpatia das massas como ilusória condição sem a qual o poder, supostamente, esvair-se-ia de suas mãos.
Tudo isso nos suscita a indagação, caso inusitadamente houvesse novas gerações convenientemente educadas, desde a infância, sob os auspícios da mais elevada razão, usufruindo o melhor que a civilização possa oferecer, se teriam ou não atitudes diferentes do comumente observado. Seriam, então, afeitos ao trabalho sem a imposição coercitiva para tal, bem como haveria a ausência da necessidade de normatização social?
Freud assim nos responde:
“A grandiosidade do plano e sua importância para o futuro da civilização humana não podem ser discutidas. È algo firmemente baseado na descoberta psicológica segundo a qual o homem se acha aparelhado com as mais variadas disposições pulsionais, cujo curso definitivo é determinado pelas experiências da primeira infância”.[3]

Porém, em continuidade à segunda citação do enunciado deste trabalho, Freud sucumbe ao realismo:
“A experiência ainda não foi feita. Provavelmente uma certa percentagem da humanidade (devido a uma disposição patológica ou a um excesso de força pulsional) permanecerá sempre associal; se, porém, fosse viável simplesmente seduzir a uma minoria a maioria que hoje é hostil à civilização, já muito teria sido realizado – talvez tudo o que pode ser realizado”.[4]

Em conclusão, podemos inferir que a educação dificilmente encontraria um modo de conduzir homogeneamente os sujeitos, pois tal empreendimento se esbarraria indubitavelmente no fato de que há sempre um abismo assustador entre o ideal e o real. De qualquer maneira, existe o artifício humano da ‘ponte’ que possibilita, apesar de que não determina, certo fluxo migratório entre a realidade e a idealidade. Persistindo, no entanto, um critério: a aludida ‘ponte’ deverá ser sempre única para cada transeunte e, ainda mais, este deverá ser seu engenheiro-construtor, num proceder contínuo e laborioso, imprescindivelmente, iniciada já a partir da tão negligenciada primeira infância.


Jorge Pi



BIBLIOGRAFIA


FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud: Totem e Tabu e Outros Trabalhos – Algumas Reflexões sobre a psicologia de um escolar – Vol. XIII. Rio de Janeiro: IMAGO EDITORA, 1996, pp. 247-250.

_______________. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud: O Futuro de uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos – Vol. XXI. Rio de Janeiro: IMAGO EDITORA, 1996, pp. 15-19.

GUTIERRA, Beatriz Cauduro Cruz. Adolescência, Psicanálise e Educação: o mestre “possível” de adolescentes. São Paulo: Avercamp, 2003, pp. 101-107.




==================================================================





[1] FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud: O Futuro de uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos – Vol. XXI. Rio de Janeiro: IMAGO EDITORA, pp. 15.
[2] Ibid., p. 16.

[3] Ibid., p. 16
[4] Ibid., p. 18.

A Escola de Vygotsky

Sueli Amaral Mello, em seu livro “A escola de Vygotsky”, diz-nos que o pressuposto da teoria histórico-cultural é de que na presença de condições adequadas de vida e de educação, as crianças desenvolvem intensamente diferentes atividades práticas, intelectuais e artísticas e iniciam a formação de idéias, sentimentos, hábitos morais e traços de personalidade que até pouco tempo atrás julgávamos impossível.
Mais conhecida no Brasil como Escola de Vygotsky, a teoria histórico-cultural é uma vertente da Psicologia soviética das décadas iniciais do século XX, após a Revolução Proletária, cujo pressuposto era o de que o homem é um ser de natureza social. Essa Escola advoga que a criança nasce com apenas uma potencialidade: a de aprender aptidões, de desenvolver sua inteligência (através da linguagem oral, da atenção, da memória, do pensamento, do controle da própria conduta, da linguagem escrita) e sua personalidade (através da auto-estima, dos valores morais, éticos e da afetividade).
Ao contrário dos outros animais, o homem precisa aprender as habilidades a desenvolver. Nunca houve pausa na transmissão dos conhecimentos acumulados, geração após geração, o que redundou no que chamamos de história humana. As criações culturais, não existindo no início dessa história humana, passaram a existir graças à atividade criadora e produtiva específica do homem: o trabalho. Com a construção dos objetos, as aptidões, habilidades e capacidades humanas necessárias ao seu bom uso foram também surgindo e sendo como que cristalizadas nos próprios objetos da cultura. Ademais, como principal tese da teoria histórico-cultural, a idéia de que o processo de desenvolvimento humano resulta de um anterior processo de aprendizagem se configura, também ela, como um processo socialmente mediato.
Essa compreensão de homem e de seu desenvolvimento vai condicionar todo o entendimento da questão educacional. A teoria histórico-cultural concebe o processo do desenvolvimento das qualidades humanas como de caráter educacional, o que nos remete a uma reflexão a respeito da educação, de um modo geral, e da prática pedagógica, em especial.
Com Piaget, aprendemos a pensar que as relações do indivíduo com as culturas são importantes, mas não essenciais, uma vez que sem elas haveria um nível de desenvolvimento humano garantido pela carga biológica com que a criança nasce. É aí que ocorre a ruptura adotada por Vygotsky. O desenvolvimento da inteligência e da personalidade é resultado da aprendizagem. As características inatas são condição essencial para o desenvolvimento, mas não suficientes. Em outras palavras, na ausência da relação com a cultura, o desenvolvimento humano não ocorrerá. O desenvolvimento não antecede a aprendizagem, mas, ao contrário, é a aprendizagem que antecede, possibilita e impulsiona o desenvolvimento. Mas, se a aprendizagem é tão importante, é preciso ir à teoria histórico-cultural e perguntar: quando acontece a aprendizagem?
Vygotsky, estudando as formas tradicionais de avaliação do desenvolvimento psíquico, percebeu que elas utilizavam apenas o que a criança era capaz de fazer independentemente dos outros. Ele chamou esse nível de desenvolvimento de zona de desenvolvimento real.
Além da zona acima indicada, Vygotsky percebeu o que chamou de zona de desenvolvimento próximo, ou seja, aquilo que a criança não é capaz de fazer sozinha, mas já é capaz de fazer em colaboração com um parceiro mais experiente, preparando-se para realizar a atividade por si mesma. Assim, somente haverá aprendizagem quando o ensino ocorrer na zona de desenvolvimento próximo. Ensinando, pois, à criança o que ela já sabe, ou para além daquilo que ela possa fazer com a ajuda de alguém, não haverá nem aprendizagem, nem desenvolvimento.
Para Vygotsky, o bom ensino é aquele que garante aprendizagem e impulsiona o desenvolvimento. O educador não deve fazer as atividades nem “pela”, nem “para a" criança, mas “com” ela, num espírito de parceria.
O papel da fala é dirigir o trabalho educativo para estágios de desenvolvimento ainda não alcançados pela criança, impulsionando novos conhecimentos e conquistas, a partir da zona real de desenvolvimento da criança, avançando a partir daquilo que ela já sabe, rumo àquilo que ela não sabe ou precisa da ajuda de outros para fazer.
Mas o educador não tem maior importância no processo educacional do que a própria criança. Ela também é tão importante para a o perfeito andamento das particularidades de sou processo de aprendizagem, quanto o educador.
A intervenção do adulto, para propiciar a aprendizagem, deve levar sempre em consideração a relação entre o desenvolvimento real e o nível do desenvolvimento próximo, alcançado pela criança. Ela só terá condições de fazer sozinha o que consegue fazer com a ajuda de outrem mais experiente, sempre ativo do ponto de vista daquele que aprende e num processo colaborativo, para que haja a perfeita reprodução do uso que a sociedade faz dos objetos, das artes, das técnicas, das relações sociais, etc.. O adulto, assim, tem que atuar junto com a criança, mas esta tem que realizar as atividades por si mesma e não o educador por ou para ela.
Nos primeiros meses de vida, a atividade principal da criança é a comunicação (emocional) com os adultos que cuidam dela. Na atividade com os objetos, a criança vai criando as condições para o desenvolvimento da fala. Próximo aos três anos, a criança passa a imitar os adultos em suas relações sociais e com o mundo da cultura.
Leontiev chama atividade não a qualquer coisa que a pessoa faça, mas apenas aquilo que faz sentido para ela, sempre com um objetivo (aquilo que se pretende alcançar no final da tarefa) e um motivo (a necessidade que leva a pessoa a agir). O sentido é dado pela relação entre o motivo e o objetivo previsto para a tarefa. Havendo coincidência entre motivo e objetivo, essas atividades têm um sentido para a criança. Mas atividade não como sinônimo de execução de uma tarefa pela criança. Ao contrário, como conhecimento do objetivo pela criança que deve responder a um motivo, a uma necessidade e a um interesse seus.
As atividades artificiais não geram necessidades de leitura e escrita na criança, nem buscam sua iniciativa. Não fazem sentido para a criança que aprende.
Se o bom ensino é aquele que incide sobre o que a criança ainda não sabe, como garantir que a criança mantenha uma atitude ativa em relação ao conhecimento e que, ao mesmo tempo, conheça o novo? Isso significa que o educador deve compartilhar com a criança os passos dos procedimentos didáticos, os objetivos das tarefas propostas, a divisão das tarefas possíveis e provoque a iniciativa e a atividade no processo de execução da tarefa, assim como sua participação na avaliação da atividade desenvolvida.
Esse trabalho compartilhado possibilita a atuação do aprendiz em níveis cada vez mais elevados e a internalização de aptidões, habilidades, e capacidades humanas cada vez mais elaboradas. Por exemplo, entre três e seis anos, devemos considerar que o faz-de-conta é a atividade pela qual novas capacidades e aptidões podem ser introduzidas. O que fazer quando as crianças não mostram interesse, motivo ou necessidade de leitura? Devemos simplesmente ignorar a leitura?
Sabedores de que, por exemplo, os programas de TV podem direcionar os nossos interesses e motivações, podemos constatar que se os motivos, os interesses e as necessidades são aprendidos, então velhos motivos podem ser modificados e novos podem ser criados; e, se os motivos que são trazidos pelos alunos para a escola são aprendidos nas diferentes situações em que vivem, então o papel da instituição escolar não é o de responder às necessidades, aos motivos ou interesses que as crianças trazem para a escola. Desta forma, o educador é um criador de necessidades que contribuam para o desenvolvimento humano das crianças. Mas, como criar novos motivos e interesses ligados às atividades humanas que a vida cotidiana não estimula nas crianças?
Quando a criança lê um livro “para ir brincar”, “ir brincar” é o motivo eficaz que move sua ação. A criança não faz a leitura como uma atividade, pois o motivo (ir brincar) não tem relação direta com o resultado que ela obtém ao final da ação que realiza (conhecer o assunto do livro). Aí, a leitura não tem sentido para a criança: ela só lê para poder ir brincar em seguida, sem se concentrar na leitura. Porém, no ato de ler, a criança pode vir a se interessar pelo que lê. Então, com o advento desse profundo interesse, o resultado da tarefa que realiza se torna mais significativo para a criança do que o motivo que, de início, impulsionou a ação de ler. É quando ela passa a ler para conhecer o assunto, também passando a compreender a leitura num nível mais elevado em sua consciência. A atividade da leitura torna-se, assim, significativa, ao tempo em que é criada uma nova necessidade e possibilitado um novo desenvolvimento.
Por isso, aquilo que será proposto às crianças, na escola é essencial e deve ser bem escolhido. È preciso que o educador descubra as formas mais adequadas de trabalho com o seu grupo, através do reconhecimento dos níveis de desenvolvimento real e próximo das crianças.
A criança que emerge dos estudos dessa teoria é, sem a menor dúvida, “capaz”: capaz de interação com os adultos, com os objetos; capaz de internalização das idéias e sentimentos morais e éticos; capaz de colocar-se no lugar dos adultos com plena compreensão dos diversos papéis e relações sociais que testemunha; capaz de fazer teorias, interpretar fenômenos e interações sociais. Assim, a criança passa a ser entendida e aceita como cidadã, como alguém que sabe por ser capaz de aprender.
Por fim, e a título de conclusão, somos informados pela autora que a teoria histórico-cultural estabelece que o ensino da criança de zero a seis anos não deve se desenvolver sob a forma de mera lição escolar, mas sob a forma de um jogo, utilizando-se de observação direta, bem como de diferentes tipos de atividade plástica. Então, para os estudiosos da Escola de Vygotsky, as bases sobre as quais deve ser realizada a formação orientada ao desenvolvimento da inteligência e da personalidade da criança, são: o desenvolvimento máximo das formas especificamente infantis de atividade lúdica, prática e plástica, além da imprescindível comunicação das crianças entre si e, imprescindivelmente, entre os adultos.

Jorge Pi





REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA



MELLO, S.A.. A Escola de Vygotsky. In:
CARRARA, Kester (org.). Introdução à Psicologia da Educação. São Paulo: Avercamp, 2004, pp. 135-154.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O CONCEITO DE EXPERIÊNCIA EM DAVID HUME E BERTRAND RUSSELL

1 – INTRODUÇÃO

Numa demonstração de refinada lucidez, David Hume, já na Seção I das suas “Investigações Acerca do Entendimento Humano”, intitulada “Das Diferentes Classes de Filosofia”, oferece-nos um indicativo explícito do direcionamento de sua reflexão filosófica, quando nos diz: “Fazem-nos sentir a diferença entre o vício e a virtude(...)”[1].
No início dessa Seção, ele fala sobre as duas diferentes maneiras pelas quais pode ser tratada a Filosofia Moral, tal como era entendida em sua época; sendo uma sedimentada na ação e a outra na razão. É se referindo à primeira maneira que ele aponta, na citação acima, para o sentir como elemento decisivo à escolha entre o vício, enquanto hábito ou disposição irracional, e a virtude, como uma capacidade específica que ilustra integralmente a excelência de algo.
Desse modo, é estabelecida a primazia do “sentir” diante da virtude e até da própria razão, como uma ruptura inequívoca com uma certa herança da tradição filosófica.
Trata-se, no entanto, de uma obstinação pela busca da captura do óbvio, aliada a uma inabalável coragem de, em sendo humano, e somente deste jeito, ser filósofo. Trata-se, ainda mais, e acima de tudo, de refletir o des-conhecido não “para além do” conhecido, mas “no” conhecido; o que, em certa medida, pressupõe um esforço que quase poderíamos denominar de “super-humano”, não por extrapolação conceitual e sim por completa e exaustiva adequação substancial com “o” aquilo mesmo que existe.
Por sua vez, aprofundando a crítica humeniana do que se entende por “causa”, Bertrand Russell, como veremos, no ensaio intitulado “Sobre a Noção de Causa” (capítulo IX, do livro “Misticismo e Lógica e outros Ensaios”), propõe-se, em primeiro lugar, mostrar que a palavra “causa” está vinculada a associações enganosas e, portanto, é sumamente desejável sua extrusão do vocabulário filosófico. Em segundo lugar, faz uma investigação em torno da existência ou não, na ciência, de algum princípio que seja usado em lugar da “lei da causalidade”, tão apregoada pelos filósofos. E em terceiro lugar, expõe também que certas confusões ligadas à teleologia e ao determinismo, aparentemente estão relacionadas às noções errôneas de causalidade.
Ademais, no capítulo seguinte, intitulado “Conhecimento por Familiaridade e Conhecimento por Descrição”, da obra citada acima, Russell envida esforços no sentido de considerar o que de fato se conhece em casos nos quais as proposições sobre o que ele denomina como “o assim-e-assim”, são conhecidos sem, no entanto, conhecer-se quem ou o que é “assim-e-assim”. Ou seja: o que se conhece, quando o objeto de conhecimento é meramente descrito? Qual a natureza do conhecimento por descrição?
Além disso, ele busca pela definição do conceito de juízo e pelo entendimento do que seja uma proposição. Também o vemos discutir sobre “significado”, “denotação” e “função proposicional”. Nisso tudo, sempre em sintonia com a tendência axiomática de o empirismo afirmar que “só experiência gera ciência”.

2 – O CONCEITO DE EXPERIÊNCIA EM DAVID HUME

2.1 – Das Impressões às Idéias

É trabalhando com o certo e o conhecido que Hume inova, ao discernir e propalar uma mudança de paradigma no emaranhado mundo das abstrações filosóficas; dando vazão à precisão empírica e abolindo a intricada tendência à aproximação pretensamente cautelosa dos construtores de mirabolantes teorias e artifícios diversos cujo propósito sempre foi o de atingir uma “aceitável explicação” da estrutura e funcionamento do mundo.
Ousado e ao mesmo tempo contido, Hume desafia o estabelecido e nos incita a uma percepção da obviedade presente no aparentemente insuspeito, negligenciado por justamente ser implícita e ininterruptamente negado: o mundo, não pensado, mas verdadeiramente sentido.
Pondo de ponta-a-cabeça o aprendido, apreendido e mantido como seguro, ele reavalia o conceito de “idéia” em oposição a uma nova e revalorizada noção de “impressão”.
Estabelece-se, assim, uma relação pensamento/sensação diferente e até oposta à proposição até então vigente. O pensamento é resultante, sempre, e a sensação, sempre originadora.
Mas, o que é pensamento e o que é sensação, em Hume?
Certamente compreenderemos melhor se soubermos o que é “idéia” e o que é “impressão”, no glossário do filósofo.
No final do primeiro parágrafo da Seção II, intitulada Da Origem das Idéias, ele afirma: “O pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação mais embaçada”[2]. Que isso quer dizer?
Ora, se considerarmos a noção humeniana de “grau de vivacidade”, poderemos entender melhor a assertiva acima.
Para Hume, todas as percepções do espírito estão divididas em duas classes, distinguidas por seus diferentes graus de força e de vivacidade, como ele próprio escreveu: as “idéias” e as “impressões”.
As “idéias” são cópias, mais ou menos fiéis, dos objetos reais, porém menos fortes e menos vivas do que aquilo que Hume chamou de “impressões”, ou as percepções mais fortes e vivas, das quais são originadas as idéias ou os pensamentos.
Tudo aquilo que “ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos”[3], no instante em que assim experienciamos, constitui a verdadeira matriz ou a origem dos fenômenos secundários, aparentemente originais e independentes, chamados e conhecidos por todos como pensamentos ou “idéias”.
E se, na aparência, o homem se deixou seduzir pela ilusão de ilimitude do pensamento, dando origem à tendência generalizada para uma metafísica senhora de si e acima do mundo, é porque há como que uma “impressão retroativa” em seu interior que o faz refletir exponencialmente a realidade de tudo aquilo que é, foi e poderá vir a ser algo, concretamente, algum dia.
E o homem gosta de se “sentir” como um ponto diminuto que, paradoxalmente, consegue abarcar, por aproximação, o Todo Absoluto, no meio deste oceano cósmico, imenso e entontecedor, em que está imerso.
Dessa forma, aquilo que está contido no homem (o pensamento), acaba por ser transformado no continente em que o próprio homem gosta de se “sentir” contido.
De instrumento de cálculo e entendimento do mundo, de si e dos outros homens, o pensamento (fruto de variegadas combinações de impressões diretas e reais de tudo com que mantemos contato) passa ao curioso e inusitado status “natural” de soberano diante das próprias coisas, pessoas, animais, plantas, etc..
No entanto, é preciso despertar deste sono filosófico de indefinição abismal em que, voluntariamente, colocamo-nos como que numa letargia subjetivística que parece abranger o infinito, mas que gira em círculo enquanto as infinitas possibilidades oníricas de combinações em formas de idéias é que se nos configuram em derredor, gerando a familiar impressão de variedade que, de fato, existe, mas não como matriz e sim como virtualidade interna quase desapercebida ou, num extremo oposto, supervalorizada.
Assim, David Hume pretende justamente constatar o óbvio (muitas vezes tão caro a uma mente fascinada e desacordada do real que está vivamente estampado diante dos nossos cinco sentidos). O óbvio que sempre está à espera da devida atenção da nossa desatenta subjetividade, quase sempre absorta e em constante, desesperada e mesmo despropositada fuga através das pretensas “profundidades” dela própria.
E para provar que o pensamento não é tão ilimitado como parece, David Hume propõe dois argumentos, demonstrando ser afeto ao empirismo crítico e não ao dogmático. O primeiro consiste na análise de que é sempre possível reduzir as idéias, por mais complexas que pareçam, às cópias de sensações precedentes. Como a idéia de Deus, que claramente se configura como a projeção ao infinito da excelência de inteligência, de sabedoria e de bondade almejadas como “ideais” no âmbito do espírito humano. Ao tempo em que lança um desafio a quem afirma não ser isto universalmente verdadeiro, inclusive indicando o método: indicar uma idéia que, em sua opinião, não derive da mesma fonte.
O segundo argumento é a lembrança de que, em todos os que têm um defeito em um órgão que os privem de um determinado tipo de sensação, é encontrada uma invariável e correspondente incapacidade para a formação de idéias correlatas. Então, o cego é desprovido da noção de cor; o surdo, da noção de som. E decerto que se um “milagre” ocorresse e tanto o cego como o surdo fossem agraciados com o acesso à percepção visual e auditiva, respectivamente, com certeza as idéias relacionadas às funções acima listadas seriam imediatamente instauradas.

2.2 – O Papel da Experiência e da Mente na Produção do Conhecimento

Hume nos diz: “ao abrirdes as portas às sensações, possibilitais também a entrada das idéias(...)”[4]. E ainda faz-nos perceber que também nos casos em que nunca tivemos a oportunidade de travar experiência sensorial com algo, então é como se este algo em particular não existisse e a nossa associação mental a ele vinculada fosse naturalmente nula.
E é assim, justamente, em razão de que a “única maneira por que uma idéia pode ter acesso ao espírito(...)”[5] é “(...) mediante o sentimento e a sensação reais”[6]. Mesmo com o preciso conhecimento da inegável objeção dos que advogam haver idéias simples que não derivam de impressões prévias correspondentes, David Hume ainda assim não se deixa esmorecer, argumentando que não se elimina toda uma regra geral a partir de uma única exceção à mesma.
A título de exemplo, tal objeção fundamenta-se em que, numa seqüência contínua e gradual dos matizes de uma dada cor (sirvamo-nos do azul), se for omitida uma das intermediárias à percepção de um observador que, por seu turno, nunca a tivesse visto, ainda assim este a “sentiria”, ao registrar opticamente a graduação acrescida ao nítido fenômeno de uma destacada ausência da qual teria interior, imediata e inegável “noção”; ou ser-lhe-ia criada uma “vaga idéia”, mas que de fato consistiria numa “idéia” (por mais vaga que fosse) oriunda de uma atestada “não-experiência” sensória.
Porém, em detrimento dessa forçosa e inapelável rendição aos adversários do empirismo, Hume, logo em seguida e de maneira oportuna, lança uma evidência à regra geral perfeitamente verificável, resumida em que “todas as idéias, especialmente as abstratas, são naturalmente fracas e obscuras”[7] e também que “o espírito tem sobre elas um escasso controle”[8].
Ainda mais que “todas as impressões, isto é, todas as sensações, externas ou internas, são fortes e vivas”[9]. E, mais ainda, que devemos sempre usar da fórmula-indagação “de que impressão é derivada aquela suposta idéia?”[10], toda vez que nos deparássemos com termos filosóficos impregnados de alardeados significados ou idéias.
Com esse tipo de abordagem, é possível trazer, à necessária clareza de compreensão, as “idéias” com as quais possamos manter contato, em nossas inúmeras discussões, sem fugirmos da tão estimada busca pelo resgate de sua precisa realidade original, bem como de sua correspondente natureza estrutural sem os artifícios multi-camufladores das definições mentais que nos anestesiam o verdadeiro e “palpável” entendimento a seu respeito.
Sendo assim, podemos entender perfeitamente o real papel da “experiência” e da “mente”, na produção do conhecimento. As impressões (ou, percepções) das exterioridades é que são decisivas para a formação das estruturas mentais que, por sua vez, delineiam os limites (interpostos em amplidões de possibilidades) daquilo que dizemos conhecer.
Donde se entende que desde a real experiência até o desdobramento ocorrido em sua projeção naquilo que se convencionou chamar de idéia, inaugura-se o sentido de entendimento a se estabelecer como dimensão cognoscitiva e como padrão identificador corroborados pelo sentir e pelo atuar num mundo concatenado com nexos prévios e cumplicidades, a um tempo instintivas e, quase sempre, racionais.

2.3 – Investigações do Entendimento Humano (Poderes e Limites)

Que significa entendimento, para Hume?
“Para Hume o entendimento é o modo de ser do homem como sujeito que conhece (ou, se preferirmos, como cognoscente). A ciência da natureza humana equivale ao ‘exame do entendimento’ e do modo como ele está ‘mobiliado’, ou seja, do modo como ocorrem as percepções na medida em que se resolvem em impressões e em idéias”[11].

Analisando brevemente a citação acima, verificamos que o homem está posicionado na condição de cognoscente e que, em conseqüência direta, se ele não reconhece não pode ser tido como homem, exatamente naquilo em que é desconhecedor. Ou seja, sua consciência de ser é entrelaçada à imperiosa condição de conhecer para atingir o entendimento, e somente assim funcionar como homem que se reconhece conhecendo o mundo, os outros homens e a si mesmo.
Então, se quisermos nos aprofundar ou mesmo tender ao domínio da ciência da natureza humana, teremos que, de forma minuciosa, examinar o “entendimento” que qualifica e caracteriza enquanto se processam impressões e se constróem idéias a partir das percepções resolvidas e tornadas parte daquilo que faz do homem cognoscente.
No pensar de Hume, existem três princípios de conexão entre as idéias: o princípio de semelhança, o de contigüidade e o de causa ou efeito.
Esses princípios regem justamente o entendimento humano na medida em que ao nos depararmos com a cópia sempre nos lembramos do original (semelhança); quando pensamos num banco de praça, naturalmente nos vem à consciência os arbustos em derredor, os jardins a embelezarem o cenário com suas variadas flores, etc. (contigüidade); por fim, se vemos fumaça se avolumando por detrás de uma casa, logo nos afligimos por deduzirmos a presença originária e perigosa do fogo (causa e efeito).
E considerando a força das paixões e da imaginação na natureza humana como algo não desprezível; e sendo o homem um ser racional em contínua busca do harmonioso estado de existência chamado felicidade; tudo isso nos encaminha para a mais certa das verdades: em tudo o que o homem faz, pensa ou fala, sempre haverá um propósito ou intenção. Por mais que através de meios tortos, sempre há a busca da satisfação de suas necessidades, como se ele se alimentasse continuamente, ora com alimentos, propriamente, ora com o trilhar a senda subjetiva da construção contínua do conhecimento dentro dos limites do seu entendimento, mas sempre no exercício do inexaurível poder de ser cognoscente, ininterruptamente. Como que numa triangulação percepção-impressão-idéia em perene atividade, até o instante fatídico da morte.
Ademais, para toda obra é necessário um plano e o estabelecimento de uma meta; ou não se consegue atingir o intento almejado.
Percebe-se facilmente, portanto, que um fio de ligação (conexão) parece abranger o perímetro de nossas ações, quer tenhamos ou não disto consciência, causando a manifestação de uma unidade vertical de propósitos, perpendicular a toda uma diversidade horizontal contida nas experiências de toda a nossa vida. Será isto verdadeiro?

2.4 – Causas, Efeitos e Conexões Necessárias

Em geometria, o axioma é contundente e o entendimento, apesar de emaranhado e mal disfarçado em certo dogma subliminar, satisfaz-se em boa conta de exatidão convencional. Mas o mesmo não ocorre para o que Hume chama de “os sentimentos mais sutis do espírito, as funções do entendimento, as diversas agitações das paixões (...)” [12].
Pois, ao refletirmos sobre aquilo que mais nos diz respeito (os sentimentos, ao invés dos axiomas geométricos), podemos notar uma premente fuga de domínio conceitual e categorial; instaurando-se, assim, irrefutável ambigüidade a que temos que aturar como se estivéssemos sempre destinados a um inevitável e paradoxal “auto-alheiamento”.
Assim, o vício e a virtude, o bem e o mal, nos quais estamos enredados porque os sentimos, escapam-nos. Enquanto isso, muito embora seja a custa de “uma cadeia de raciocínios muito mais extensa e bem mais complicada”[13] (ou, afastada da realidade sensível), as verdades “metafísicas” da geometria são mais “seguramente” assimiladas e dominadas.
Em compensação, as inferências e os passos intermediários que nos direcionam às idéias morais são em menor número que os relativos às idéias geométricas.
Mas essa diferença ocorre justamente porque o que ignoramos pode ser de duas espécies: ou ignoramos aquilo que está afastado de nós (números, idéias metafísicos), ou aquilo com que nos defrontamos quotidianamente.
Como as nossas idéias, ou conceitos, são fruto das impressões de nossas percepções, então, por isso mesmo, é preciso um esforço menor para “atestarmos” a nossa falta de entendimento, no sentido absoluto, daquilo que não somos obrigados a dominar com a completa vivacidade dos sentidos, já que, relativamente aos princípios geométricos, não os experienciamos mas apenas refletimos sobre eles.
Diante disso tudo, no entanto, e como nos esclarece Hume, “o principal obstáculo para o nosso aperfeiçoamento nas ciências morais ou ([14]) metafísicas consiste na obscuridade das idéias e na ambigüidade dos termos”[15].
E logo adiante ele nos adverte dizendo que “não há idéias mais obscuras e incertas em metafísica do que as de poder, força, energia ou conexão necessária (...)”[16].
Sendo assim, e lembrando que idéias são cópias de impressões previamente “sentidas”, podemos, em decorrência, inferir que as idéias complexas são formadas ou compostas por porções de idéias simples em um conjunto único.
Ora, a idéia de conexão necessária é complexa, em natureza; portanto passível de ser analisada em suas porções mais simples, de unidades (impressões) menores, para ser melhor compreendida.
Não há nada, num exame isolado de uma dualidade “causa-efeito” qualquer que nos assegure a existência concreta de uma imprescindível conexão necessária.
No primeiro momento, tanto aquilo que posteriormente se denomina causa de determinado efeito, em si mesmo, e por ele próprio, não possui, a não ser “pela força do pensamento e do raciocínio”[17], a menor característica palpável de uma causa. Ou seja, não tendo ainda havido o desenrolar das contingências e, portanto, não tenham ocorrido “fatos” que possam ser “trabalhados” por perspicazes raciocínios, o que poderia ser chamado uma causa é apenas, e por si mesmo, mais um fato ou evento.
Como tudo no universo sofre mudança sucessiva e ininterrupta, em diversos ritmos (uns instantâneos e outros aparentemente estáticos); como o espírito observa, analisa e supõe a ausência de intervalo e de distinção entre os eventos sucessivos; por estas razões, a mente estabelece o dogma de um “real” fio a possibilitar a conexão, essencialmente, entre as ocorrências particulares unificadas em um trilho de impressões internos de eventos externos ou internos a se desdobrarem e se sucederem como se fossem “ligados”, evento após evento, no decorrer do dogma mental chamado tempo (como algo concreto).
È em razão de, pela nossa própria vontade, podermos mover os órgãos do nosso corpo ou dirigir o curso de nossa imaginação que nos deixamos levar pela interior certificação de que existem, de fato, necessárias conexões ao refletirmos sobre a sucessão dos aludidos eventos diversos.
Mas existem certos órgãos, como, por exemplo, o coração e o fígado, sobre os quais não podemos interferir imediata e conscientemente. Por outro lado, o próprio conhecimento de que temos uma alma (refinada) “conectada” a um corpo (grosseiro) e, ainda mais extraordinariamente, com o poder de exercer influências sobre este último, deixa-nos estupefatos e entregues à idéia de que, de fato, deve haver uma força ou um poder na vontade que possibilita a continuidade da misteriosa união entre a alma e o corpo, bem como de possibilitar as variadas ações dela sobre este.
Portanto, que o movimento de um órgão obedece ao comando da vontade é um fato. “Mas” temos que confessar francamente que “o poder ou a energia que o realizou, do mesmo modo que em outros eventos naturais, é desconhecido e inconcebível”[18]. Desta forma, o minucioso exame da vontade nunca seria capaz de nos fornecer uma idéia real da aludida força ou energia, como detecção do podermos identificar um concreto indício de uma “conexão necessária”.
Por pertinência, sempre se vê um efeito como intrinsecamente relacionado a uma causa, como capacitadora de sua manifestação, mas também como sendo, supostamente, um, sinônimo da outra.
Em razão de, habitualmente, admitirmos nas operações fenomênicas da natureza a força ou a energia contida na causa, o nascedouro infalível de um determinado e esperado efeito, igualmente nos acostumamos à facilidade de pensar e até necessitar que imediata e seguramente, após o surgimento de um fenômeno, logo se configure o seu resultante efeito; como quando se solta uma pedra de gesso do alto de um edifício e, logo após, é registrado o seu esfacelamento ao atingir a superfície.
E quando há fenômenos de natureza extraordinária e de causa desconhecida ou insólita, tendemos à explicação vinculada a “algum princípio invisível e inteligente como causa imediata do evento”[19] que, pensamos, “não pode ser explicado pelos poderes corriqueiros da natureza”[20].
Porém, analisando filosoficamente, podemos perceber, auxiliados pela aguda observação Humeniana, que “mesmo nos eventos mais familiares, a energia da causa é tão ininteligível como no mais invulgar, e que apenas apreendemos da experiência a freqüente conjunção dos objetos, sem que jamais sejamos capazes de compreender nada semelhante à conexão entre eles”[21].
Então, dizem os filósofos entregues à explicação extravagante, miraculosa ou sobrenatural, semelhantemente a como é compreendido pelo vulgo, os eventos chamados causas são, na verdade, ocasiões. Sendo que a verdadeira causa de tudo na natureza é o Ser Supremo, que interliga, por Sua Vontade, todos os eventos ou objetos particulares. “Assim, toda coisa está plena de Deus”[22].
Mas aqueles que não se deixam parar na caminhada da livre reflexão, descobrem que, apesar de estarem logicamente corretas essas conjecturas, também nos lança distantes da realidade diária ou da experiência, perdendo em muito o grau de confiabilidade na sua eficácia, por absoluta inoperância prática de corroboração.

3 – O CONCEITO DE EXPERIÊNCIA EM BERTRAND RUSSELL

3.1 – Aprofundamento da Crítica da Noção de Causa

Russell nos chama a atenção para a curiosidade de que a causação sempre foi tida pelos filósofos como um dos axiomas fundamentais da ciência; no entanto, esta pretensa regra geral nunca ocorreu nas ciências avançadas. Aliás, a física, por exemplo, nem ao menos a procura. E isso se explica pelo simples fato de que, em verdade, causas não existem; devendo, então, a “lei da causalidade” ser considerada como mera “relíquia de épocas passadas, que sobrevive como a monarquia, apenas porque se supõe, erroneamente, ser inofensiva”[23].
Para analisar com maior profundidade e se valendo das próprias convenções estabelecidas, Russell se reporta ao Dicionário de Baldwin, com o intento de entender o que os filósofos compreendiam como “causa”, através dos verbetes: “causalidade (a conexão necessária dos eventos na série temporal...), noção de causa (tudo que pode ser incluído no pensamento ou percepção de um processo por ocorrer em conseqüência de outro processo) e causa e efeito (termos correlativos que denotam quaisquer duas coisas distinguíveis, fases ou aspectos da realidade, de tal forma relacionados entre si que sempre que a primeira deixa de existir, a segunda passa a existir imediatamente após, e sempre que a segunda passa a existir, a primeira deixou de existir imediatamente antes)[24]”.
Considerando tais definições, Russell vê na primeira delas uma dependência tão absoluta da definição de “necessário” (“um predicado de uma função proposicional, significando que é verdadeiro para todos os valores possíveis de seu argumento ou argumento”[25]), que o faz afirmar que a noção de causa “está longe de ter qualquer significação definida”[26].
Se não, vejamos o seu exemplo: na frase “seria verdadeiro em todas as circunstâncias”, seu sujeito é uma função proposicional e não uma proposição. Pois se uma dada proposição admite apenas ser verdadeira ou falsa, não é possível haver indefinição como a implícita no termo “circunstâncias”. Ou seja, toda expressão, contém uma variável possível de se tornar uma proposição ao se lhe atribuir determinado valor “necessário”, enquanto “predicado de uma função proposicional”.
Todavia, ser “verdadeiro em todas as circunstâncias” e, ao mesmo tempo, ser apenas “verdadeiro” implica no delineamento de uma impossibilidade, sendo mesmo absurda uma definição traçada nesses termos.
Então, podemos concluir: “uma proposição é necessária, com relação a um certo constituinte, se continuar verdadeira quando esse constituinte se alterar de qualquer modo compatível com a proposição que continua significante”[27].
Como exemplo de causalidade, temos que se um determinado evento ocorre agora, outro que o sucederá, só o fará daqui a pouco. E considerando como uma lei universal, mesmo sem levar em conta ainda se esta lei é verdadeira ou falsa, teríamos: “dado qualquer evento e1, há um evento e2 tal que sempre que ocorrer e1, e2 ocorrerá mais tarde”[28].
Sendo a segunda definição meramente ilustrativa, não nos oferecendo nenhum problema , Russell passa logo para a terceira, considerando-a a mais clara e precisa das três. No entanto, ele aponta para um aspecto crítico: se uma causa ou um efeito, ou ambos, duram apenas por um tempo finito e são processos que envolvem mudança interna, há uma exigência (se se querem universais) de relações interligando, de forma causal, as partes anteriores e as posteriores; donde se infere que estas últimas são relevantes ao efeito, por implicação de contigüidade que, no entanto, não existe entre as partes anteriores e o efeito. De tal modo que há que se diminuir indefinidamente a duração da causa e, ainda assim, restaria anterioridade que, sendo alterada, não alteraria o efeito; dito isto, deduz-se a inacessibilidade da causa verdadeira, já que não é possível, por definição, a pluralidade causal. Ora, se a causa é de natureza estática, abrem-se duas incongruências que carregam em si incompatibilidades reais: se não envolve mudança interna, não é possível na natureza; se, após existir por algum tempo, subitamente venha a se tornar um efeito que sinaliza uma estranha contigüidade entre causa e efeito, no tempo, o que contraria a necessidade de um intervalo de tempo como mediador.

3.2 – Confusões da causalidade

Se o princípio “mesma causa, mesmo efeito”[29], que os filósofos consideram imprescindível para a ciência, fosse-o, de fato, a própria ciência tornar-se-ia estéril.
Além da máxima acima, existem outras que analisaremos a seguir.
“Causa e efeito devem, mais ou menos, parecer-se”[30]. Se assim fosse “a mente não poderia ter-se desenvolvido num universo que não contivesse previamente algo de mental, sendo uma das razões para essa crença o fato de a matéria ser muito dessemelhante da mente para poder causá-la”[31]. Ou o que há de mais nobre em nós seria inexplicável, a não ser que o universo possuísse em si algo igualmente tão nobre e que fosse a fonte. Mas a ciência mostra que, na verdade, toda “causa” são dois estados de todo o universo e que o “efeito” sempre é um evento particular.
Uma terceira máxima a impregnar a imaginação de muitos filósofos expressa que “a causa é análoga à volição, uma vez que deve haver um nexo inteligível entre causa e efeito”[32]. Onde é dito “inteligível”, configura-se como se se quisesse dizer “familiar à imaginação”; não sendo, portanto, menos inteligível que a conexão entre um ato de vontade e sua realização.
Como quarto axioma: “a causa compele o efeito num sentido em que o efeito não compele a causa”[33]. Sendo “compulsão” uma noção muito complexa, podemos assim definir: qual conjunto de circunstâncias que compelem alguém, quando este alguém deseja fazer algo que as circunstâncias impedem ou, então, abster-se de algo que seja causado pelas circunstâncias. Ou, simplesmente, enquanto alguém faz o que deseja ou, quando não tem desejo, não possui compulsão. Por isso, há engano em se afirmar que a causa compele ou determina o efeito.
Um quinto axioma: “uma causa não pode agir quando deixa de existir, porque o que deixa de existir é nada”[34]. O engodo desta máxima está em atribuir ação às causas. Pois há ação apenas na volição.
Sexto axioma: “uma causa não pode agir exceto onde se encontra”[35]. Diretamente atingindo Newton, este axioma, em filosofia, levou à negação da ação transitória, mais especificamente, ao monadismo de Leibniz.

3.3 – Que “lei” no Lugar de Causa?

Considerando que o evento anterior é a causa e o posterior, o efeito, há, no entanto, eventos anteriores que não são sucedidos por esperados eventos posteriores. Como quando ao se observar uma série de fósforos que, ao serem riscados, é possível que uns acendam e outros não, quando acusaremos a umidade como interferidora ou “tumultuadora” do processo, circunstancialmente.
Analisando-se a “lei da gravitação”, pode-se inferir que “nada há que possa ser chamado causa, e nada que se possa chamar efeito; só há uma fórmula”[36]. A “lei da causalidade”, tão cara aos filósofos, só o é face a sua ignorância, ou à de sua maioria, quanto à idéia de função.
Sendo impossível enunciar em linguagem não matemática a lei aceita pela ciência que substitui a “lei da causalidade”, pode-se entende-la como segue: “Há uma relação constante entre o estado do universo em qualquer instante e a taxa de mudança na taxa em que qualquer parte do universo se está mudando desse instante; e esta relação é de muitos-um, isto é, tal que a taxa de mudança na taxa de mudança é determinada quando se dá o estado do universo”[37].
Mas para que possamos nos familiarizar paulatinamente com a lei enunciada acima, precisamos perceber a impossibilidade de ela ser concebida como existindo a priori, auto-evidente, nem como uma premissa da ciência; diante dela, o futuro determina o passado, tanto quanto o inverso; ela não é empiricamente verificável; por fim, ela não pode ser comprovada com exatidão positiva, mas está sob os domínios das leis da Probabilidade.

3.4 – Conhecimento por Familiaridade

Estamos familiarizado com algo quando temos relação cognitiva direta com este algo (relação cognitiva não no sentido de uma relação que constitua juízo, mas sim, apresentação), num processo de conscientização deste algo. A direção desta relação é no sentido sujeito-objeto e não no sentido objeto-sujeito, que pode ser chamado de apresentação. Ou, então, quando se diz que João tem familiaridade com a bola será o mesmo que dizer que a bola foi apresentada a João. Mais ainda, a familiaridade propõe-se a enfatizar a ação do sujeito sobre o objeto e o universo, perde-se de vista o sujeito e o objeto é enfatizado.
Como resultado de desequilíbrio dessas relações temos o perigo de, na exacerbação da relação “sujeito objeto” de sermos inseridos no idealismo extremado e na da relação objeto-sujeito, de cairmos no mais irredutível materialismo.
No conhecimento por familiaridade, conhece-se algo se autofamiliarizando com este algo.Havendo sempre a reverberação da conscientização do objeto pelo sujeito, numa relação de reflexão descritiva mais profunda do que a mera e superficial do sujeito que se familiariza com a própria familiarização.

3.5 – Conhecimento por Descrição

Por descrição deve-se conceber uma sentença do tipo “um assim-e-assim” (indefinido) ou “o assim-e-assim” (definido). No primeiro tipo haverá descrição de caráter ambíguo e no segundo, de caráter definido. Iremos nos ater aqui apenas à descrição de caráter definido. Quando se diz “o assim-e-assim existe”, apontamos especificamente para a existência de um objeto de verificação, ou de conhecimento, definido, e não qualquer outro.
Os substantivos e os nomes próprios são, geralmente, descrições. Na mente de quem quer que pense num nome próprio somente haverá clara adequação na expressão de um nome próprio se este puder ser equivalentemente substituído por uma descrição contundente.
A natureza do conhecimento por descrição sempre impele à aplicação definida de existência (quando é indicado que, no mínimo, um ‘tal’ existe), de unicidade (como quando, no máximo, uma coisa é ‘tal’ ou o ‘tal’ e ‘tal’ é ‘tal’) e de predicação (quando se diz que tal coisa é), enquanto fórmula repercutiva de demonstração. Ou se “pequeno” é uma descrição, então, “pequeno”, denota um sentido: existe um objeto, ou ao menos um, com esta característica.

3.6 – Juízo e Proposição

Pedro, tendo o conhecimento de si mesmo, pode usar o seu próprio nome para designar diretamente a pessoa com quem tem familiaridade. Faz um juízo de si mesmo, ao tempo em que é constituinte de tal juízo. Neste caso, o nome próprio apenas representa um objeto e não serve de descrição deste mesmo objeto.
Porém, na hipótese de haver alguém que, conhecendo Pedro, emitisse um juízo a seu respeito, seria, assim, bastante diferente. Isto porque este alguém se utilizaria de certos dados sensoriais relacionados com Pedro, como elementos formadores de uma familiarização com o corpo e suas peculiares expressões, por intermédio de uma assimilação interpretativa, oriunda do processamento subjetivo de dados colhidos sensorialmente.
Russell reduz ‘proposições’ a atitudes mentais, embora as distinguido dos enunciados. Considera-as como “crenças” ou “atitudes proposicionais”, sendo que as proposições são definidas como eventos psicofisiológicos de certa espécie: imagens complexas, expectativas. Isto porque as proposições podem vir a ser falsas.
“O princípio epistemológico fundamental na análise das proposições que contém descrições é o seguinte: toda proposição que podemos entender deve ser totalmente composta de constituintes com os quais estamos familiarizados”[38].
Quanto aos juízos, Russell os entendia como aquilo que se distinguia de uma representação pura porque contém o momento da convicção e porque esta convicção consiste em adotar a atitude de aceitação ou de recusa daquilo de que se faz juízo.
Russell nos mostra que se julgamos que Paulo ama Sandra, o juízo, considerado enquanto evento, consiste na existência, num dado tempo, de uma relação específica constituída por quatro termos: quem julga e Paulo, o amor e Sandra. No momento em que, quem julga, está julgando, o seu julgar, como uma relação relacionada, participa ativamente do que se constata como Paulo que ama Sandra.
Mas, para isso, é preciso que, “sempre que ocorra uma relação de supor ou julgar, os termos a que a mente que supõe ou julga está relacionada pela relação de supor ou julgar devem ser termos com os quais a mente em questão está familiarizada”[39].

3.7 – Significado e Denotação

Russell afirma que ao substituir o termo “Júlio César”, por exemplo, por alguma descrição de Júlio César, ele está indicando como atribuir ou configurar um significado de um juízo, sem, no entanto, querer substituí-lo por uma idéia.
Sendo a descrição “o homem cujo nome era Júlio César” e o juízo “Júlio César foi assassinado”, podemos daí ter “o homem cujo nome era Júlio César foi assassinado”, onde podemos ver que Júlio César é o “ruído” com que estamos familiarizados e os outros elementos de juízo, conceitos com os quais estamos familiarizados.
Todos os nossos juízos pressupõem familiaridade prévia daquilo que atribuímos valor, mediante dois aspectos relacionais: significado e denotação. Mas que são significação e denotação?
Russell, respondendo à indagação acima, faz-nos considerar que em frases como “o autor de Waverley”, o significado consiste num complexo que pode ser decomposto em autoria, Waverley e alguma relação; enquanto que denotação é Scott (o autor). Dá-nos também o seguinte exemplo: “bípedes implumes”. Neste exemplo, a classe dos homens está claramente denotada, enquanto as palavras “bípedes” e “implumes”

3.8 – Função Proposicional

Uma função proposicional é um complexo contendo um constituinte indeterminado, tornando-se uma proposição assim que se determina esse constituinte.
Por exemplo, ao dizermos “x escreveu ‘A Mão e a Luva’ e ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, e ninguém mais”, queremos que isto é capaz de ser verdadeiro se só houver uma alternativa (Machado de Assis) que substitua adequada e precisamente x ”.
Dessa forma, o verdadeiro sujeito de nosso juízo é uma função proposicional.
Analisando a palavra função, apreendemos o seu conceito inferindo que se trata de uma regra lógica que une as variáveis de certo termo ou de um grupo de termos com as variáveis de outro termo ou grupo de termos; ou que é a operação de aplicar efetivamente a regra que interliga as variações de dois conjuntos de quantidades, de tal modo que se encontrem os valores de alguns dessas quantidades quando os outros são dadas.
Assim, pode-se entender função proposicional como uma função (conforme definido acima) que, conforme suas variáveis independentes sejam substituídas por denotações adequadas produz proposições precisas que são seus valores.

4 – CONCLUSÃO FINAL

Em síntese, o empirismo Humeniano, além de bem posicionar as idéias como sendo consequências das nossas impressões (fruto de percepções externas e internas), lega-nos a lúcida compreensão de que existem eventos e eventos, sendo, sem observação regular, ou mesmo, arbitrariamente, uns chamados causas e outros, efeitos.
Humanamente, detectamos enfileiramentos cronológicos em tais ocorrências compostas de percepções sucessórias e, em aparência, contínuas. Então, supomos deduzir-lhe corretamente a estrutura, denominando de conexão; quando, honestamente, seria mais adequado e justo chamar de conjunção, por maior aproximação terminológico e conceitual. Sendo, inclusive, graças à nossa absoluta e não declarada incapacidade de nos desvencilharmos de tão camuflada ignorância, mergulhada numa imaginação respaldada em nosso sentimento interior e inefável de conexão, que acabamos por ser impelidos ao estabelecimento do hábito de conformação à sua pseudo-essencialidade.
Assim, percebe-se claramente em Hume um empirista crítico, reflexivo e completamente não-dogmático.
Por sua vez, vimos como Russell, mesmo no campo da lógica tentou manter-se fiel a Hume, rediscutindo a “lei da causalidade”, como enunciada pelos filósofos, chegando à conclusão de que ela é falsa e, ademais, demonstrando que a ciência não a emprega. Que um determinado sistema com um conjunto de determinantes provavelmente pode possuir outros conjuntos de tipos diversos. Que um sistema mecânico pode ser teleológica ou volitivamente determinado.
Outrossim, foi demonstrado também por Russell que há duas espécies de conhecimento de objetos: por familiaridade e por descrição. Sendo que somente o conhecimento por familiaridade dispõe o objeto diante da mente.
E tratando sobre o juízo, Russell constatou que quando o juízo é corretamente analisado, os objetos que o constituem devem ser aqueles que a mente os tenha, em si, familiarizados. Daí, o resultado das análises de significado, denotação e função proposicional, a corroborar a clareza de seu pensamento e o admirável alcance de seus argumentos lógicos, contidos nos seus ensaios.

Jorge Pi


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia (Tomos de I a IV). Trad.: Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyami Campanário. São Paulo: Loyola, 2000.
RUESSELL, Bertrand. Misticismo e Lógica e Outros Ensaios. Trad.: Alberto Oliva e Luiz Alberto Cerqueira. Rio de Janeiro: Zahar Editores.



[1] HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 25.
[2] HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 35.
[3] HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 36.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 38.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia (Tomo II). Trad.: Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno e Nicolás Nyami Campanário. São Paulo: Loyola, 2000, p. 841.

[12] HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 74.
[13] Idem.
[14] Grifo nosso.
[15] HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 75.
[16] Idem.
[17] Idem, p. 76.
[18] HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 79.
[19] HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 81.
[20] Idem.
[21] HUME, David. Investigações Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anaor Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 81.
[22] Idem, p. 82.
[23] RUESSELL, Bertrand. Misticismo e Lógica e Outros Ensaios. Trad.: Alberto Oliva e Luiz Alberto Cerqueira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 188.

[24] RUESSELL, Bertrand. Misticismo e Lógica e Outros Ensaios. Trad.: Alberto Oliva e Luiz Alberto Cerqueira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 188.

[25] Idem.

[26] Idem, p. 189.

[27] Idem, p. 190.

[28] Idem.
[29] RUESSELL, Bertrand. Misticismo e Lógica e Outros Ensaios. Trad.: Alberto Oliva e Luiz Alberto Cerqueira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 196.

[30] Idem.
[31] Idem.
[32] Idem.
[33] RUESSELL, Bertrand. Misticismo e Lógica e Outros Ensaios. Trad.: Alberto Oliva e Luiz Alberto Cerqueira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 196.

[34] Idem, p. 198.
[35] Idem.
[36] Idem, p. 200.
[37] RUESSELL, Bertrand. Misticismo e Lógica e Outros Ensaios. Trad.: Alberto Oliva e Luiz Alberto Cerqueira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 201.
[38] RUESSELL, Bertrand. Misticismo e Lógica e Outros Ensaios. Trad.: Alberto Oliva e Luiz Alberto Cerqueira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 224
[39] RUESSELL, Bertrand. Misticismo e Lógica e Outros Ensaios. Trad.: Alberto Oliva e Luiz Alberto Cerqueira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 226.

A Crítica Cartesiana ao Aristotelismo Tomista (Recorte/Resumo/Questão)














O projeto cartesiano apoiava-se num trabalho crítico com fins de revisar o saber tradicional. Através de sua dúvida metódica, ele buscou a suspensão do juízo de valor relativo a todos os conhecimentos herdados. Para isso, Descartes não intencionava examinar, mas recusar mesmo todos os conhecimentos estabelecidos e, por fim, reconstruir um novo saber. Ele buscava refutar a tradição aristotélico-tomista, substituindo velhos conceitos, como o de “forma substancial”, por novas idéias, causando, com isso, profundas modificações nos fundamentos da ciência.

Para Aristóteles, dois pares de noções eram estratégicos: forma/matéria e ato/potência. A forma era o que determinava a matéria, e a potência era o que possibilitava o ato. Sendo assim, algo que exista só existe por causa de sua substância, como essência à qual são acrescidos acidentes ou determinações não-acidentais, sendo que substância compõe-se de forma, enquanto atualização potencial, e matéria. Portanto, conhecer algo, para Aristóteles, era conhecer sua forma substancial. Por isso, sua física era o estudo da essência dos fenômenos em seus múltiplos movimentos ou variegadas mudanças, sendo a mais importante delas, como efeito de uma causa, a geração ou nascimento, uma espécie de modelo a partir do qual todas as outras mudanças são compreendidas ou explicadas. Então, a física de Aristóteles tinha uma característica biológica pela analogia mudança/mecanismo de reprodução, quanto à causa. Mudar era engendrar, fazer nascer. O movimento é concebido a partir de suas causas ou princípios. Os seres se dividiriam em artificiais, quando feitos pelo homem, e naturais, não fabricadas pelo homem, possuindo em si o princípio de vida ou de mudança (os animais, os vegetais, os minerais e, em maior grau, o homem). O princípio de vida seria a alma que, no homem, seria sua forma substancial. Assim, a física aristotélica seria interligada a uma psicologia. Se isso já era inaceitável para Galileu, que abandonara o estudo qualitativo das essências pelo quantitativo das relações matemáticas dos fenômenos, em Descartes tem um alcance metafísico mais amplo.

Já no tratado Do mundo, Descartes recusa as noções aristotélicas de forma, qualidade, ação e outras. Estabelece os termos extensão e movimento, juntamente com figura, como os princípios de sua física; faz distinção entre extensão e pensamento, físico e psíquico. O domínio de sua física estando apenas ligado aos fenômenos das substâncias extensas e não das pensantes. A reflexão cartesiana que estabelece a absoluta distinção entre as substâncias facilita a demolição das formas substanciais, através do procedimento crítico. Essa distinção possibilita o emprego do método geométrico no conhecimento do mundo físico, como princípio fundamental da física moderna que depois utilizará procedimentos físico-matemáticos. A filosofia cartesiana, por sua vez, terá como ponto de partida justamente a separação das substâncias. Buscando um ponto fixo e seguro para a reconstrução da ciência, Descartes se utiliza da dúvida metódica, não permanente como a cética, mas provisória, até que aquele que duvida se dê conta do exercício do duvidar e atinja o ponto limite, com a descoberta do pensamento. Ao duvidar e perceber que duvida, o sujeito constata a sua necessária presença no processo, entendendo, assim, inegavelmente, que pensa, logo, existe.


Questão:

Em que está baseada a crítica ao aristotelismo tomista, feita por Descartes?

- A crítica ao aristotelismo tomista feita por Descartes, baseia-se na “(...) denúncia de que conceber a presença de qualidades e ações nos corpos físicos nos impede de concebê-los como físicos e que, portanto, a clareza que se deseja na ciência da natureza deve começar por uma separação completa entre o físico e o psíquico”, pois sem a necessária separação entre estas duas instâncias somente nos resta confusão e, conseqüentemente não são estabelecidos os fundamentos apropriados para a instauração da verdadeira ciência. Ao divisar as noções de substância extensa e substância pensante, como norteadoras para o campo de ação da sua proposta de ciência, no primeiro, e o de filosofia, no segundo, Descartes torna claros e distintos os novos rumos das investigações do conhecimento como um todo, ao tempo em que deixa patente o equívoco de todo uma sistema que, fundado em uma visão equivocada da realidade, trazia em si, inapelavelmente, o gérmen da sua auto-destruição.
Jorge Pi
Fonte:
LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Descartes. A Metafísica da Modernidade. São Paulo. Moderna, 1993, pp. 45-52.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O conceito de Lógica em Kant





Em sua monumental obra, Kant nos faz compreender que, além da sensibilidade, possuímos uma segunda fonte de conhecimento, qual seja: o intelecto. Através da sensibilidade, os objetos nos são dados, enquanto que, por intermédio do intelecto, eles são pensados.
À sensibilidade, Kant nos aponta a estética como a detentora dos domínios de suas leis. Quanto ao conhecimento das leis e operações do intelecto, ou do pensamento em geral, é-nos proposta por ele a lógica.
Dessa forma, nem os conceitos, desprovidos de uma correspondente intuição, nem a própria intuição, destituída de conceitos, possibilitar-nos-iam, unilateralmente, o conhecimento. Mas ambos (intuição e conceitos) é que constituem efetivamente o nosso conhecimento.
Sendo uma antípoda do pensamento de Hume, o conceito de lógica de Immanuel Kant estabelece que absolutamente tudo o que há na natureza acontece segundo regras, mesmo que nem sempre delas tenhamos conhecimento.
Desde o menor dos deslocamentos de uma gota d’água, na qual detectamos a imprescindível ação da gravidade, até o movimento implícito em todo o reino animal, observamos que toda a natureza não é nada mais do que uma estonteante e regular conexão de variegadíssimos fenômenos atrelados a incontestes regras, quer as conheçamos ou nem ao menos o suspeitemos.
Daí Kant deduz que ao exercermos todos os nossos poderes, mesmo que, de início, não tenhamos disto a menor indicação, agimos ou operacionalizamos segundo certas regras, e somente aos poucos vamos nos familiarizando com elas, de tal sorte que passamos até a ter dificuldade de as abstrair. Como o que ocorre quando dizemos não conhecer regras gramaticais, apesar de que sabemos perfeitamente que para falarmos a língua que falamos é indubitável que estejamos nos servindo, paradoxal e ironicamente, de regras gramaticais.
Mais particularmente, o poder do nosso entendimento é a fonte e a faculdade de pensarmos as regras em geral, submetendo as representações intuídas pelas operações da sensibilidade ao crivo de suas concatenações reguladoras.
Aprofundando mais na natureza das regras, das quais o próprio entendimento procede, Kant nos diz que elas são ou necessárias ou contingentes. Aliás, o uso em geral do entendimento não seria possível se não fossem as regras necessárias, bem como o uso específico do entendimento (por exemplo, no caso da matemática, da física ou da moral) também não seria possível sem as regras contingentes ou particulares.
As regras necessárias nos proporcionam a possibilidade de pensar dos mais variados modos. Sendo discernidas “a priori”, ou seja, independentemente de toda experiência, estão relacionadas, assim, com a forma (estrutura) e não com a matéria (objeto) do pensamento. Em decorrência disto, vislumbra-se na ciência, ou no conhecimento, das leis necessárias do entendimento e da razão em geral, a precisa adequação conceitual da própria lógica.
Portanto, a lógica é o fundamento para todas as demais ciências. Não como um órganon das ciências (enquanto uma maneira de levar a cabo um certo conhecimento). A lógica é, sim, uma arte geral da razão. É um cânon, ou uma ciência das leis necessárias do pensamento.
Assim como a moral está situada na instância do “dever ser”, a lógica se debruça sobre o “dever pensar”, não a respeito de como é e pensa o entendimento, mas como se deve proceder, ao pensar, encaminhando-nos, com isto, ao uso correto, ou concordante, do entendimento.
Sabendo agora o que é a lógica, podemos divisar suas propriedades essenciais. E logo discernimos que ela não está direcionada para “o que” é o conhecido pelo entendimento, nem para “o quanto” é possível se conhecer ou “onde” se situam os limites do conhecimento. Mas apenas “como é que o conhecimento há de se conhecer a si mesmo”[1]. Como ciência racional, a lógica, segundo a forma e a matéria, é uma doutrina ou uma teoria demonstrada, ocupada somente com as leis universais e necessárias do pensamento em geral, aprioristicamente. É, assim, um cânon que serve “a posteriori” para a crítica, como no âmbito prático das normas estéticas, na condição de um princípio da avaliação de todo o uso do entendimento em geral.
Oportunamente, percebe-se, sem a menor dificuldade, que, ao contrário de David Hume, para Kant, somente o que vale “a priori”, vale necessariamente, e o que vale “a posteriori”, vale contingentemente.
Isso nos faz apreender que a compreensão kantiana da lógica em geral pressupõe a noção de que o nosso conhecimento provém de duas fontes: a representatividade das impressões, como intuições (no sentido empírico), e a espontaneidade dos conceitos (no sentido puro), como quando somos capazes de assimilar conceitualmente um objeto através da representatividade empírica apontada acima.
Através da via empírica, é-nos “dado” o objeto e, através da via pura, ele é “pensado” (como simples determinação do espírito).
Então, de intuições e de conceitos é constituído todo o nosso conhecimento. A sensibilidade é o que se pode chamar a receptividade do espírito. Por sua vez, o entendimento é a capacidade de produzir representação ou espontaneidade do conhecimento. Porém, o entendimento, por si mesmo, nada pode intuir e os sentidos, por eles próprios, não podem pensar nada. Somente pela sua reunião é que se pode obter conhecimento. Mas, trata-se aí de uma reunião sem fazer confundir as suas participações, separando-os e os distinguindo com cuidado: estética, enquanto ciência das regras da sensibilidade em geral; e lógica, como ciência das regras em geral do entendimento.
Ademais, a lógica pode ser considerada de duas maneiras distintas: como do uso geral ou do uso particular do entendimento.
Podemos dizer que a lógica é do uso geral quando contém as regras absolutamente necessárias do pensamento. E é correto afirmar que é do uso particular quando contém as regras para pensar com retidão sobre determinada espécie de objetos. A primeira é a lógica elementar e a segunda é o órganon das ciências, quaisquer que sejam estas.
Assim, a lógica é ou “pura” (abstraindo-se toda e qualquer condição empírica) ou “aplicada” (como nos diz Kant: “quando se ocupa das regras do uso do entendimento nas condições empíricas subjetivas que a psicologia nos ensina”[2]).
Por fim, para Kant, a lógica é uma ciência afastada tanto da ontologia quanto da psicologia, parecendo adotar tão-somente um aspecto formal, não como “envoltura”, mas como algo que está intrínseco ao seu conteúdo. Ou seja: uma consciência mais “possui” pensamentos do que “pensa” a realidade. Sendo, pois, a lógica kantiana, uma lógica transcendental (ou: “um princípio a partir do qual se pode entender a possibilidade de outros conhecimentos sintéticos ‘a priori’”[3]), e possuindo a mesma forma da lógica tradicional, difere justamente na medida em que é uma lógica do uso do entendimento, em suas mais diversas operações, como faculdade de produzir conceitos a intermediar, estrategicamente, as inumeráveis operações da faculdade de receber impressões (a sensibilidade) com as operações incalculáveis da faculdade de produzir idéias (a razão).
Jorge Pi


[1] KANT, Immanuel. Lógica. T. Brasileiro: 1992, p. 30.
[2] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, K. Goubenkian, 4ª ed.: 1997. A-53, p. 90
[3] Idem. B-40, p.66.