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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

PAI-NOSSO (em Aramaico) e os Sete Chacras Tibetanos

Retirado da Capa do livro "A Vida Mística de Jesus"
(Dr. H. S. Lewis - AMORC/GLP)]


Da Oração abaixo teria derivado a atual versão do PAI-NOSSO:
(Conforme está escrita numa pedra de mármore branco, no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, na Palestina)

7 - Abvum d’bashmaia
6 - Netcádash shimóch
5 - Tetê malcutách Una, Nehuê tcevianách aicana
4 - d’bashimáia af b’arha
3 - Hôvlan lácma d’suncanán Iaomána
2 - Uashbocan háubein uahtehin Aicána dáf quinan shbuocán L’haiabéin
1 - Uêla tahlan l’nesiúna. Êla patssan min bíxa metúl dilahie malcutá, Uaháila, Uateshbúcta láhlám.


ALMÍN!!!








Meditemos sobre a Oração do Mestre Jesus (Issa)
traduzida para o Português:


Pai-Mãe, respiração da Vida, Fonte do som, Ação sem palavras, Criador do Cosmos!

Faça sua Luz brilhar dentro de nós, entre nós e fora de nós para que possamos torná-la útil.

Ajude-nos a seguir nosso caminho Respirando apenas o sentimento que emana de Você.

Nosso EU, no mesmo passo, possa estar com o Seu, para que caminhemos como Reis e Rainhas com todas as outras criaturas.

Que o Seu e o nosso desejo sejam um só, em toda a Luz, assim como em todas as formas, em toda existência individual, assim como em todas as comunidades.
Faça-nos sentir a alma da Terra dentro de nós, pois assim, sentiremos a Sabedoria que existe em tudo.

Não permita que a superficialidade e a aparência das coisas do mundo nos iluda, E nos liberte de tudo aquilo que impede nosso crescimento.
Não nos deixe sermos tomados pelo esquecimento de que Você é o Poder e a Glória do mundo, a Canção que se renova de tempos em tempos e que a tudo embeleza.

Possa o Seu amor ser o solo onde crescem nossas ações.

domingo, 1 de novembro de 2009

O Princípio da Tolerância em Locke



John Locke nasceu no ano de 1632, em Wrington, nos arredores de Bristol. Estudou no Christ College (Oxford), sendo ali nomeado leitor de grego e de retórica. Interessou-se por filosofia moderna, medicina (tornando-se médico em 1667), química e física. Era assíduo leitor de Descartes e de Robert Boyle. Mas também se ocupou com problemas políticos, sociais, educacionais, econômicos e religiosos.
Considerado como um dos mais distintos e influentes representantes do empirismo inglês, Locke, no entanto, claramente mesclava o seu pensamento com certa dose de racionalismo.
Sua filosofia não consistia somente em uma teoria do conhecimento, mas também comportava uma doutrina ética e política.
Curiosamente, seus “Tratados sobre o governo” e sua “Carta acerca da tolerância”, apareceram anonimamente. Mas isso não significa, em absoluto, que ele não desse a devida atenção às doutrinas moral e política, pois, do mesmo modo, é sabido que ele dedicou muito tempo à preparação destas obras.
Na “Carta acerca da Tolerância”, Locke se propõe mostrar que a perseguição por motivos religiosos é ilegítima, quer seja realizada pelo Estado ou pela Igreja; que o Estado não deve se ocupar da salvação das almas; que a Igreja, qualquer que seja, não tem legitimidade para aplicar sanções e penas que ultrapassem a esfera espiritual; além do mais, todas as sanções são inúteis nestes domínios, em razão de não haver instrumento eficaz que garanta a adoção de uma determinada crença pelos indivíduos que são forçados a tal exigência.
Neste trabalho, então, propomo-nos a fazer uma breve análise sobre o princípio da tolerância, baseando-nos em sua epístola acima mencionada, onde procuraremos evidenciar o seu conceito, combater a sua antítese (a intolerância), bem como delinear a sua categorização filosófica.
Por oportuno, e a título de introdução, lançando um olhar crítico sobre as diversas épocas e os mais variados lugares do globo terrestre, com muita facilidade podemos constatar que, na história da humanidade, durante séculos, a questão da tolerância, ou da sua antípoda, a intolerância, foi tratada como a atitude que os governantes tinham para com as crenças e religiões minoritárias. Aliás, sempre se defendeu que a unidade política de um país dependia diretamente, ou em grande medida, da sua unidade religiosa, o que, de uma forma ou de outra, sempre levou os governantes a terem a necessidade de administrar a questão da tolerância, quer tivessem ou não uma clara consciência deste conceito, como assunto de estado da mais alta importância.
A tolerância, para Locke, era algo intrínseco à mensagem evangélica, assim como à própria filosofia. Para sustentar este ponto de vista e demonstrar a presença da tolerância na Bíblia, e mais especificamente no Novo Testamento, percebe-se com muita facilidade que ele faz uma espécie de separação entre a "letra" que mata e o "espírito da letra" que vivifica. Assim, a leitura da Bíblia deveria ser dirigida á luz da razão, através de uma depuração de tudo o que seja contrário à própria tolerância.
Logo no começo de sua carta, Locke recorre a um conceito bíblico de tolerância, qual seja, não é possível conceber um cristão sem caridade, cuja essência é a própria tolerância, conforme citação abaixo indicada:
“Desde que pergunta minha opinião acerca da mútua tolerância entre os cristãos, respondo-lhe, com brevidade, que a considero como o sinal principal e distintivo de uma verdadeira igreja”.[1]

Prerrogativas acidentais como antiguidade de tradição e esplendor ritualístico, reforma doutrinária e inconteste ortodoxia, caracterizam vinculação com o poder e a dominação temporais, mas, em nenhuma medida são legítimos indicadores de “sinais da igreja de Cristo”[2], como nos diz Locke.
Pois, sem demonstrar pureza de conduta, benignidade, caridade, boa vontade e mansuetude, conseguidos através do combate aos próprios vícios, ninguém poderá jamais se denominar verdadeiramente um cristão. Aliás, Locke nos adverte que não é através da pompa exterior, do domínio eclesiástico e, nem tão pouco, do exercício coercitivo da força das armas que se cumpre o papel da religião legitimamente cristã; mas por intermédio da exortação à virtude e à piedade, bem como do exemplo de conduta de todo aquele que se proclamar representante do Cristo, ou de qualquer divindade que seja, na Terra.
Não se deve jamais querer que, através do sofrimento e da tortura, uma alma seja salva. A única forma eficaz é por intermédio de uma amorosa admoestação dirigida a um coração sedento de luz e esperança; e que, efetivamente, esteja à procura do conteúdo de tal exortação a fim de que possa ser guiado até a saída da senda trevosa em que se encontre.
Então, não é meramente pela filiação a um culto religioso, qualquer que seja ele, que se evidenciará a sinceridade de um “fiel”; mas, pela sua silenciosa e interior aceitação doutrinária que lhe arrebata, indubitavelmente, o coração, fazendo de seus atos e de suas aspirações, autênticas expressões de uma sincera e irrepreensível devoção religiosa.
De igual modo, Locke nos faz dirigir a atenção para assuntos opostos aos temas religiosos como quando suas palavras nos chamam a atenção para as atividades e funções do governo civil.
As paixões como a impiedade, o orgulho e a ambição desmedida, inseparáveis dos assuntos humanos, podem levar a excessos deploráveis que se manifestam sob a forma de vilanias, as mais hediondas, e destruição de toda espécie.
Ora, as funções e os deveres do magistrado civil consistem na determinação imparcial de leis uniformes, bem como na sua preservação e manutenção, tendo em vista a posse e o usufruto de bens civis, quais sejam: a vida, a liberdade, a saúde física, as terras, dinheiro, as casas e muitos outros.
Em nenhum desses pontos detectamos a vocação direcionada aos cuidados propiciadores da salvação das almas, como sendo da incumbência da magistratura civil; tais como, por exemplo, quando em alguma condição ou estado após a morte, na qual elas enfim se deparem.
Claramente, qualquer um de nós é capaz de verificar, sem o menor esforço de raciocínio, o que compete ao poder civil e o que é reservado, especificamente, ao poder religioso. Baseando-se nessa constatação, Locke advoga, segura e inequivocamente, a imperiosa necessidade de separação entre os domínios da política e os da religião, defendendo que o Estado não deve influenciar nas opções religiosas dos cidadãos e, reciprocamente, a religião não tem o direito de pleitear legítima intervenção em assuntos de Estado. Desta forma, tanto a religião (enquanto domínio da salvação pela fé e o culto a Deus, conforme estabelecido previamente em forma de doutrinas e regras) quanto o Estado (como instância dos interesses civis), ambos têm domínios muitos específicos, distintos, nunca devendo, pois, ser tomados como coincidentes.
Apesar de possuírem algumas semelhanças, a salvação do individuo não tem nenhuma ligação com a sua utilidade e missão neste mundo ou com as suas relações sociais que o atrelam a direitos e obrigações civis; levando, por sua vez, a caracterizá-lo como um cidadão politicamente participativo na sociedade humana que tem a prerrogativa de, eventual ou rotineiramente, na privacidade de um templo consagrado pelos seus nobres propósitos e compreensíveis aspirações, cultuar o Deus de sua predileção em conjunto com outros que compartilhem os mesmos sentimentos e a mesma fidelidade religiosa.
A Igreja é, assim, uma sociedade livre de homens e mulheres reunidos voluntariamente para praticarem um culto comum ao Deus Todo Poderoso com a profícua finalidade de, em espírito solidário de auxílio mútuo, alcançarem coletivamente a salvação individual das suas almas.
Por sua vez, a sociedade é uma associação de indivíduos que, em busca da garantia mútua de sobrevivência, fizeram entre si um contrato de reunião ou convivência harmoniosa, a partir do esperado cumprimento de uma série de obrigações, em benefício do usufruto de uma correspondente série de direitos, com vistas à perpetuidade e a melhoria contínua da espécie, sob pena de, em havendo transgressões às normas previamente estabelecidas, a reparação deverá ser imputada de maneira justa, imparcial e proporcional ao delito cometido.
Mas, diversamente de uma sociedade, uma Igreja não pode exercer qualquer tipo de violência sobre os seus membros. Os seus únicos meios de ação são a admoestação compassiva e a advertência benfazeja. Além do mais, elas devem cultivar a tolerância entre si mesmas.
Aliás, Locke sustenta veementemente e sempre, que nenhuma crença pode ser imposta a qualquer outra, seja qual for a alegação ou argumento. Mais uma vez, não se deve abraçar uma crença religiosa, qualquer que seja, se for sob o jugo da dor e da opressão.
A crença em Deus e em Seus misteriosos desígnios, de determinada e convencionada maneira, assim como a aspiração à salvação da alma, são temas que geram questões de foro íntimo, podendo ser identificadas como o fruto de uma inequívoca luz interior, uma irrefutável evidência intuitiva e um puro e sincero desejo, respaldado apenas pelo cristalino reverberar de um coração apascentado e de uma mente que se pretenda isenta de enganos e de conflitos de qualquer espécie.
Mas (e nunca é demais alertar), não há meios de saber se os indivíduos acreditam ou não no culto do qual participam. Pois a Igreja somente pode fornecer a possibilidade da comunhão das crenças. Quanto à autenticidade dos propósitos, nunca se tem certeza absoluta.
Sendo assim, a intervenção do Estado, no âmbito da esfera religiosa, é limitadíssima e, por natureza, no mínimo, temerária. O Estado deve assegurar apenas a prática dos atos de interesse público, isto é, que estejam atrelados à manutenção da ordem e da paz sociais, assim como estimular a prosperidade econômica, com base no necessário fortalecimento da segurança civil.
Há, no entanto, limites à tolerância. E esses podem ser delineados com clareza e distinção como sendo o fanatismo e o ateísmo. Locke os aponta tornando evidente a tendência, paradoxalmente estranha à mensagem evangélica, ou dos católicos que, cegamente obedientes aos ditames papais, rivalizavam com rude hostilidade todos os que professassem outras religiões, ou dos protestantes, que, no ímpeto de defenderem a pureza de suas doutrinas reformadas, alimentam o ódio e revidam os ataques insanos dos católicos indignos de se dizerem verdadeiros cristãos. Quanto aos ateus, porque estes punham em cheque, perigosa e levianamente, os fundamentos mesmos da sociedade, já que não davam valor algum às promessas e aos acordos estabelecidos e homologados em forma de contrato entre os membros que a compunham.
Comprovadamente, John Locke estava à frente da mentalidade medíocre de sua época. Dono de uma rara visão de mundo, ele anuncia através de um importante documento em forma de uma despretensiosa carta remetida não somente aos seus contemporâneos, mas a todos os homens e mulheres de boa vontade, em todas as épocas futuras, o ideal que buscamos até hoje e que ainda não alcançamos, estando longe de (quem sabe?) atingirmos plenamente, um dia.
Ele admoesta, do início ao fim de sua epístola, que a única coisa que, em verdade, importa no cristianismo é a salvação das almas, o que depende exclusivamente da nossa conduta pessoal. Pois não seremos julgados por Deus em função de nossa brilhante interpretação das doutrinas religiosas, mas sobre se as nossas condutas foram ou não virtuosas, durante a nossa existência aqui na Terra.
Desta forma, de acordo com sua missiva, a tolerância é a essência da mensagem evangélica. Pois, então, a religião cristã deveria desprezar, sempre e em toda parte, tudo aquilo que engendra a intolerância, como a diversidade de opinião sobre a matéria da fé (as heresias); como o arraigado juízo de que se tem posse da verdadeira interpretação da palavra de Deus (a ortodoxia); bem como, também, a intrínseca ligação do Estado com a religião (teocracia).
Em conclusão, podemos ver que, em Locke, também é constatada a necessidade da tolerância por uma exigência política, como para possibilitar uma convivência harmoniosa em uma sociedade na qual, se a diversidade é inevitável, a unidade nesta diversidade representa o único instrumento conciliatório e mantenedor de um Todo que só o é pela reunião de suas inúmeras e distintas partes constitutivas.

Jorge Pi






[1] LOCKE, J. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (C. Os Pensadores), p. 3.

[2] Idem.











BIBLIOGRAFIA


LOCKE, J. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (C. Os Pensadores).

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Maria comenta Nietzsche que comenta Tales


A Autora Maria Cristina dos Santos de Souza nos faz perceber a necessidade intrínseca e historicamente verificável de unificação das cidades gregas, levadas a um crescente isolamento, em conseqüência direta de sua profunda adesão a uma cultura extremamente perpassada por mitos e um “universo multifacetado da religião” que “congregava” “formas as mais primitivas e contraditórias de antropomorfismo, compondo, assim, uma verdadeira fantasmagoria grega”. Como afirmou a autora, as cidades gregas já não suportavam mais este estado de coisas, que “poderiam conduzi-las à destruição recíproca”, além da exposição fácil à suscetibilidade ao “fortalecimento progressivo do mundo oriental, ávido de outras terras e povos”.
Caminhando por essa via de raciocínio, a autora esboça um contexto límpido no qual situa a compreensão do pensamento de Nietzsche quanto ao surgimento da filosofia atrelado, contundentemente, a “uma tentativa de fazer frente ao processo de afastamento e de enfraquecimento das cidades gregas, erguendo-se contra o mito enquanto o principal causador desses processos”.
E é justamente em Tales que se divisa pela primeira vez, entre os helenos, a figura do “combatente ardoroso dos mitos”, pois havia urgência em “ultrapassar os parâmetros confusos e contraditórios dos mitos e estabelecer parâmetros mais simples, precisos e estáveis para as cidades”.
Começava, então, o combate racional dos guerreiros da “physis”. Liderados por Tales, como seu primeiro general, que utilizou, genial e estrategicamente, um artefato novo e assombrosamente arrasador: o conceito, causa-consequência do refletir filosoficamente.
“Tudo é água”, disse Tales. E ele quis dizer: basta de mitos, de isolamento, de enfraquecimento; “Tudo é uno” na natureza e vo-lo dou em forma de água, esta unidade sobejamente intuída e imensamente desejada, para que a sede de uni-cidade, também em vós, seja saciada, cidadãos gregos diversamente constituídos sob a mesma, “única” e velha mãe Grécia!
Geograficamente localizada próxima ao Oriente, sendo “praticamente um prolongamento da Ásia Menor”, a Jônia foi o berço da filosofia grega e talvez por isso mesmo tenha assimilado tão facilmente muito da antiga cultura oriental como os “conhecimentos biofísicos, matemáticos e astronômicos milenares”, donde também facilmente pode-se perceber a origem da intuição mística da unidade cósmica que, “transmitida aos gregos foi reaprendida e renovada por uma ampla capacidade de conduzir a um acabamento mais perfeito tudo o que caía em suas mãos”. E aqui, cabe-nos indagar: será que os criadores da Democracia não estavam, na verdade, e para se protegerem da dominação oriental, tomando para si exatamente aquilo que tornava os monárquicos e absolutistas governos do Oriente tão fortes e conquistadores: o espírito de unidade? E não seria mesmo compatível, essa estrangeira virtude política com sua conhecida e vivenciada diversidade nacional?
Assim começou a filosofia: diante do óbvio, o espanto e a contemplação efervescente do “vir-a-ser”. Não era apenas conhecimento, mas o “gosto sutil” pelo conhecer. Não era apenas conhecimento o conhecer gratuito, mas que fosse digno de ser conhecido, com cuidado, zelo e profunda sutileza.
Num salto, os mitos e as ciências antigas foram ultrapassadas; não por prazer de se situar à frente e acima, mas por uma imperiosa vontade de atingir o todo, em sua totalidade única, sepultando o obscuro e o fragmentário.
Então, a autora atinge o cerne do pensamento oculto e aparente de Friedrich Nietzsche, em relação a Tales de Mileto, bem como ao começo mesmo da filosofia.
Ademais, ressalte-se que o próprio Nietzsche, numa lucidez impecável, oferece-nos à apreciação a parábola, perfeitamente adequada, dos dois andarilhos diante do regato selvagem (o desconhecido), prestes à ultrapassagem. Um, o filósofo (a filosofia, o filosofar), de um salto, atinge a outra margem; o outro, o cientista (a ciência, o raciocinar), por natureza, cauteloso, detém-se na pequena pedra e não se harmoniza com o percurso e afunda..., calculando sobre como “chegar...”.
Por fim, como disse Nietzsche, o “clangor total do mundo” fora, de fato, integralmente ouvido por Tales, numa reverberação inconteste e que lhe deu uma absoluta e íntima certeza de ter conectado a abrangência (“Tudo”) do ser (“é”) em sua verdadeira natureza (“água”).


Jorge Pi

BIBLIOGRAFIA


MARIA, C.S.S.. TALES: A DESCOBERTA DO PRINCÍPIO DA UNIDADE GREGA, SEGUNDO FRIEDRICH NIETZSCHE. _________: _______, ______;

COLEÇÃO OS PENSADORES, Nova Cultural Ltda. São Paulo, 2000.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

“As Formas Elementares da Vida Religiosa” _ Émile Durkheim


(Resumo da Introdução e do 1º Capítulo)



Introdução

Objeto da Pesquisa
Sociologia religiosa e teoria do conhecimento


I

Durkheim se propõe analisar e explicar a religião primitiva com o intuito de divisar mais claramente a natureza religiosa do ser humano, em seu aspecto essencial e permanente.
A religião primitiva é diferente das formas mais elevadas do pensamento religioso, mas não é irreligião. Ela pertence ao real e o exprime. Por detrás das aberrações contidas na manifestação religiosa primitiva, esconde-se alguma necessidade humana, individual ou coletiva. Assim, não há religião falsa, todas são verdadeiras a seu modo, sendo igualmente religião.
Por razões de método, deve-se tomar para estudo a religião primitiva: é preciso começar pelo mais simples e, gradativamente, chegar ao mais complexo.
Como todas as religiões são comparáveis, há necessariamente elementos essenciais que lhe são comuns, são somente em seus aspectos exteriores, mas nos mais profundos, permanentes e humanos: o conteúdo da idéia de religião em geral.
Nas sociedades primitivas o tipo individual se confunde com o tipo genérico. Tudo é reduzido ao indispensável (essencial), àquilo sem o que não poderia haver religião.
Assim como a descoberta de Bachofen nos mostra que também havia o matriarcalismo como pedra angular da instituição familiar primitiva, assim também, dizem-nos os etnógrafos que na religião primitiva é estranha, em grande parte, a idéia de divindade. As forças que dirigiam os ritos primitivos eram bem diferentes daquelas que nos são tão comuns em religião, apesar de que aquelas nos facilitam o entendimento das que ocupam o primeiro lugar na atualidade.
As religiões primitivas não somente destacam os elementos constitutivos, mas também a explicam. É que, em sua simplicidade, as religiões primitivas são suscetíveis de serem mais entendidas, pois estão mais próximas às próprias motivações determinantes, sendo mais elucidativas quanto à sua real estrutura antropológica do que o pensamento religioso desnaturado por uma reflexão erudita. Como “para compreender bem um delírio e poder aplicar-lhe um tratamento, o médico tem necessidade de saber qual foi o seu ponto de partida”.
Com o decorrer do tempo as mitologias populares, bem como as sutis teologias sobrepujam aos sentimentos primitivos sentimentos muito diferentes que só imperfeitamente deixam transparecer a sua real natureza.
Este estudo é portanto uma retomada do velho problema da origem das religiões.
Porém, “como toda instituição humana, a religião não começa em parte alguma”.
As causas primeiras estão sempre presentes na própria religião e mais claramente evidenciadas nas religiões primitivas, em sociedades menos complicadas.
Eis porque buscar as origens: não por atribuir às religiões primitivas virtudes particulares, e na verdade são rudes e grosseiras, mas pela natureza instrutiva oriunda de seu próprio aspecto grosseiro, já que constituem experiências cômodas em que os fatos e suas relações são mais fáceis de perceber. Divisar, na complexidade, os seus elementos básicos, formadores, para melhor compreender a complexidade mesma. Não com a pretensão de esgotar o entendimento, mas com o propósito de lhe dirigir o percurso da elucidação.

II

“Não há religião que não seja uma cosmologia ao mesmo tempo que uma especulação sobre o divino”.
“Se a filosofia e a ciência nasceram da religião, é que a própria religião começou por fazer as vezes de ciências e de filosofia”.
Criação de um homem previamente formado, a religião também o formou espiritual, cultural e sociologicamente.
Há certas categorias do entendimento humano, como as noções de tempo, de espaço, de gênero, de número, de causa, de substância, de personalidade e de eficácia, dentre outras, que, como propriedades universais das coisas ou a ossatura da inteligência, são um produto direto do pensamento religioso, facilmente perceptíveis quando se analisam metodicamente as religiões primitivas.
Então, conclui-se que a religião é uma coisa eminentemente social ou, ao menos rica em elementos sociais. Ela exprime e representa a coletividade, através de ritos, que se destinam a manter ou refazer alguns estados mentais de uma determinada coletividade humana.
Por exemplo: o tempo, como indicativo da sucessão de momentos, abarca e põe em movimento regular não somente a história individual mas a de toda a coletividade humana, dando, através da criação de uma abstração genericamente convencionada, um sentido linear de conexão mental entre aquilo que se qualifica e se quantifica como passado, presente e futuro, relativamente à consciência humana.
Outro exemplo: para localizar as coisas é preciso dividir e diferenciar aquilo que se convencionou axiomaticamente se chamar espaço, com algo absoluto, sob a forma de certo padrão comum partilhado por cada e todo membro de uma sociedade, como acima, abaixo, ao leste, ao oeste, ao norte e ao sul, nitidamente um produto de origem social, coletiva.
“O princípio de identidade domina hoje o pensamento científico; mas há vastos sistemas de representações que desempenharam na história das idéias um papel considerável e nos quais ele é freqüentemente ignorado: são as mitologias, desde as mais grosseiras até as mais elaboradas”.
Há duas doutrinas que tentam ver a origem das categorias através de ângulos opostos: uma afirma que elas existiriam imanentes ao espírito humano e a outra que elas seria construções mentais humanas. Tais concepções há séculos se chocam uma contra outra.
Se admitirmos a origem social das categorias, uma nova atitude torna-se possível, permitindo escapar ao choque entre os empiristas e os aprioristas conceptuais.
A sociedade é uma realidade sui-generis; singular no universo. É o somatório dinâmico de uma imensa cooperação de multidões de espíritos os mais diversos, que nos legaram as combinações de suas idéias (saber) e ações (experiência) no transcorrer do tempo e no transmutar do espaço.
O ser humano é duplo: um individual e outro social. Na medida em que participa da sociedade, o indivíduo naturalmente ultrapassa a si mesmo, seja quando pensa, seja quando age.
Se, a cada momento do tempo, os homens não se entendessem acerca das idéias (categorias) essenciais, toda concordância se tornaria impossível entre as inteligências e, por conseguinte, toda vida em comum.
A sociedade não pode abandonar as categorias ao livre arbítrio dos particulares sem se abandonar ela própria. Ela necessita de um conformismo moral e um lógico, sem os quais ela não poderia viver, por isso ela pesa com toda a sua autoridade sobre seus membros a fim de prevenir as dissidências. Por isso é que é muito difícil nos libertarmos daquelas noções fundamentais e conservar a nossa consciência individual. Algo resiste a nós, dentro e fora de nós. Fora de nós há a opinião que nos julga; dentro de nós por simplesmente sermos representativos da própria sociedade interiormente.
A sociedade é a manifestação mais elevada da natureza. O reino social é mais complexo que o reino natural, porém está contido nesse último.


Livro I
Questões preliminares

Capítulo I

Definição do Fenômeno Religioso e da Religião

Para definirmos religião é preciso que nos libertemos de toda idéia preconcebida.
Definições correntes: por comparação com todas as forma de religião, há um elemento em comum que consiste na “crença na onipresença de alguma coisa que vai além da inteligência”, conforme disse Spencer. Max Müller via em toda religião “um esforço para conhecer o inconcebível, para exprimir o inexprimível, uma aspiração ao infinito”. Mas essas noções são muito recentes na história da religião.

I

A idéia de sobrenatural, tal como a compreendemos, data de “ontem”. Mesmo os maiores pensadores da Antiguidade Clássica não chegaram a tomar plenamente consciência dela. É uma conquista das ciências positivas.
Antes de existir a idéia de sobrenatural, os acontecimentos mais maravilhosos nada possuíam que não parecessem perfeitamente concebíveis.
Foi a ciência, e não a religião, que ensinou aos homens que as coisas são complexas e difíceis de compreender.
Conforme Jevons: o espírito humano não tem necessidade de uma cultura propriamente científica para notar que existem entre os fatos seqüências determinadas, uma ordem constante de sucessão, e para observar, por outro lado, que essa ordem é freqüentemente perturbada. O sol se eclipsa bruscamente; a chuva falta na época em que é esperada; a lua demora a surgir após o seu desaparecimento periódico. Como estão fora do curso ordinário das coisas, esses acontecimentos são atribuídos a causas extraordinárias ou extranaturais. Assim surge a idéia de sobrenatural, objeto próprio do pensamento religioso.
Fato sobrenatural não se reduz ao imprevisto. É preciso que ele seja concebido como impossível ou inconciliável com a ordem natural das coisas. No entanto, a religião quase sempre não se preocupa com as monstruosidades ou anomalias, mas com a beleza e o mistério do Universo, bem como o habitual na natureza: o movimento dos astros, o ritmo das estações, o crescimento anual da vegetação, da perpetuidade das espécies, etc.
A noção do religioso está longe de coincidir com o extraordinário e do imprevisto. E essa concepção das forças religiosas não é primitiva.
A idéia de mistério é criação humana, limitada a um pequeno número de religiões avançadas. Portanto, não se pode utilizar o conceito de mistério como característica genérica das religiões.

II

Outra idéia para se tentar definir religião: divindade. Diz Réville: “A religião é a determinação da vida humana pelo sentimento de um vínculo que une o espírito humano ao espírito misterioso no qual reconhece a dominação sobre o mundo e sobre si mesmo, e ao qual ele quer sentir-se uno”.
Mas são divindades as almas dos mortos, os espíritos de toda espécie e de toda ordem ?
Diz Tylor: “O primeiro ponto essencial quando se trata de estudar sistematicamente as religiões das raças inferiores é definir e precisar o que se entende por religião. Se se continuar fazendo entender essa palavra como a crença numa divindade suprema... um certo número de tribos estará excluído do mundo religioso. Mas essa definição demasiada estreita tem o defeito de identificar a religião com alguns de seus movimentos particulares... Parece preferível colocar simplesmente como definição mínima da religião a crença em seres espirituais”.
Esses seres espirituais são seres conscientes como as almas dos mortos. E por procedimentos psicológicos trata-se de convencê-los, comovê-los, seja por meio de palavras (invocações ou preces), de oferendas ou sacrifícios.
Mas ter como objeto regular nossas relações com esses seres especiais, através de preces, sacrifícios, ritos propiciatórios, é um critério muito simples e extremamente restrito de se definir religião. Que dizer do Budismo que se apresenta, em oposição ao bramanismo, como diz Burnouf, como uma moral sem deus e um ateísmo sem natureza ?
O budismo é uma religião sem deus. O essencial no budismo é o que é conhecido por quatro nobres verdades: “a primeira coloca a existência da dor como ligada ao perpétuo fluxo das coisas; a segunda mostra no desejo a causa da dor; a terceira faz da supressão do desejo o único meio de suprimir a dor; a quarta enumera as três etapas pelas quais é preciso passar para chegar a essa supressão: a retidão, a meditação e, enfim, a sabedoria, a plena posse da doutrina. Atravessadas essas três etapas, chega-se ao término do caminho, à libertação, à salvação pelo Nirvana”.
“Algo bem diferente ocorre com o cristianismo, que, sem a idéia sempre presente e o culto sempre praticado de Cristo, é inconcebível; pois é o Cristo sempre vivo e a cada dia imolado que a comunidade dos fiéis continua a comunicar-se com a fonte suprema da vida espiritual”.
Tudo o que precede aplica-se igualmente a uma outra grande religião da Índia, o jainismo. Tendo Jaina como exemplo de perfeição a atingir, não admitem um Criador, consideram o universo eterno, sem início nem fim, apesar de em alguns locais se referirem a Jinapati como espécie de Jaina Supremo, adotando, portanto aspecto deísta como no cristianismo.
O germe do ateísmo contido tanto no budismo como no janaismo, aliás, já estava contido no Bramanismo, do qual se originaram.
“...mesmo no interior de religiões deístas encontramos um grande número de ritos que são completamente independentes de toda idéia de deus ou de seres espirituais”. Como a orientação bíblica judaica que ordena à mulher viver isolada todo mês durante um período determinado, assim como também durante o parto, não tendo a menor ligação com uma adoração a Jeová.
“E essas proibições não são particulares aos hebreus, mas as encontramos, sob formas diversas e com o mesmo caráter , em numerosas religiões”. “É verdade que esses ritos são puramente negativos; mas não deixam de ser religiosos”.
“Assim, há ritos sem deuses e, inclusive, há ritos dos quais derivam os deuses”. “Portanto, a religião vai além da idéia de deuses ou de espíritos, logo não pode se definir exclusivamente em função desta última”.

III

Durkheim descarta as definições anteriores e se posiciona: a religião é um todo formado de partes. É um sistema mais ou menos complexo, diz ele, formado de mitos, de dogmas, de ritos, de cerimoniais.
A definição do todo não pode ser definido senão em relação às parte que o formam. Por método, que se procure compreender a complexidade da religião começando pela sua manifestação mais simples, mais elementar.
Percebe-se no sincretismo uma forma de assimilação de religiões em decadência por outra em plena atividade.
Os fenômenos religiosos classificam-se em crenças e ritos. As crenças são opiniões sobre a profanidade ou a sacralidade de algo em questão; os ritos são modos de ação determinada, que através de sua função se reconhece o seu objetivo.
“... O sagrado e o profano foram sempre e em toda parte concebidos pelo espírito humano como gêneros separados, como dois mundos entre os quais nada existe em comum”.
“A coisa sagrada é, por excelência, aquela que o profano não deve e não pode impunemente tocar”.
“As coisas sagradas são aquelas que as proibições protegem e isolam; as coisas profanas, aquelas a que se aplicam essas proibições e que devem permanecer à distância das primeiras”.
Um conceito de religião: É o conjunto de crenças e ritos no qual determinado número de coisas sagradas mantêm entre si relações de coordenação e de subordinação, de maneira a formar um sistema dotado de uma certa unidade, mas que não participa ele próprio de nenhum outro sistema do mesmo gênero.

IV

Relação entre magia e religião: “Os seres que o mágico invoca, as forças que emprega não são apenas da mesma natureza que força e os seres aos quais se dirige a religião; com muita freqüência, são exatamente os mesmos”.
Mas há uma repugnância da religião pela magia e uma hostilidade da magia pela religião; a magia profana as coisas sagradas, a religião vê a magia com desagrado. Há, nos procedimentos do mágico, algo de anti-religioso, no dizer de Hubert e Mauss.
Contudo, entenda-se: “... o mágico está para a magia assim como o sacerdote para a religião, e um colégio de sacerdotes não é uma igreja, como tampouco o seria uma congregação religiosa que prestasse a algum santo, na sombra do claustro, um culto particular”. “Uma igreja não é simplesmente uma confraria sacerdotal; é a comunidade moral formada por todos os crentes de uma mesma fé, tanto os fiéis como os sacerdotes. Uma sociedade desse gênero normalmente não se verifica na magia”.
Também há as religiões individuais que o indivíduo institui para si mesmo e celebra por conta própria; como nas ilhas Banks o melanésio tem seu tamaniu; cada Ojibway tem seu manitu pessoal; o romano tem seu genius; o cristão católico tem seu padroeiro e seu anjo da guarda. Será que essas religiões individuais não estão destinadas a forma eminente da vida religiosa e se não chegará o dia em que não haverá outro culto senão aquele que cada um celebrará livremente em seu foro interior?
No entanto há que se reconhecer que essas religiões individuais não são senão aspectos das religiões coletivas.
“Podemos definir as religiões tais como são ou tais como foram, não tais como tendem mais ou menos vagamente a ser”.
Definição de religião: “uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem”.
A religião é, de fato, uma coisa eminentemente coletiva.



BIBLIOGRAFIA


DURKHEIM, É.. AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA – O SISTEMA TOTÊMICO NA AUSTRÁLIA. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


Jorge Pi

Resumo dos capítulos de XVIII a XX de "O Príncipe" de Maquiavel


Capítulo XVIII

De que forma os Príncipes devem guardar a fé

Em política, as grandes realizações nem sempre estão em conformidade com a palavra dada. Se é louvável a manutenção da fé, com integridade, em geral é preciso se utilizar da astúcia. Às vezes, deve-se usar da força ao invés das leis. Assim inicia Maquiavel este capítulo, mas também adverte que, ao Príncipe, convém usar com equilíbrio tanto uma como outra.
Nos ensinamentos dos antigos escritos, afirma, encontra-se Aquiles tendo como preceptor Quiron, metade homem e metade animal. Por alusão, isto significa que o Príncipe deve exercer ambas as naturezas: a de homem-animal assim como a de animal-homem, para governar com estabilidade.
Mas na natureza da besta há uma bi-complementaridade: o leão e a raposa. Há que se perceber que a raposa sucumbe aos lobos e, por sua vez, o leão aos laços. Por conseguinte, o Príncipe deveria ser uma Raposa-Leão ou um Leão-Raposa para ser bem sucedido em seu governo. Então, não guardar a palavra dada, por exemplo, quando a mesma for prejudicial ou já não mais houver razão de ser, redunda imprescindível.
Tudo porque os homens são pérfidos, afirma Maquiavel, e esta é uma perfeita justificativa à quebra da fé jurada pelo Príncipe. Por exemplo: Alexandre VI, que nunca fazia o que dizia, mas sempre foi bem sucedido.
Maquiavel também afirma que não é preciso o Príncipe possuir qualidades, mas somente aparentar possuí-las. Melhor parecer ser piedoso, fiel, humano, íntegro e religioso. Pois, ao tempo em que seja necessário não ser assim, achar-se-á rapidamente o ânimo de parecer tornar-se o contrário, por exigências circunstanciais.
Assim acontece sobremaneira com um Príncipe novo que nem sempre será um homem bom se quiser manter o governo. Aparentar sempre possuir aquelas virtudes, usando de dissimulação, inclusive a de religioso (a mais difícil delas). A aparência se evidencia à essência, ao vulgo.
No fim das contas, o que importa é se o êxito é bom ou mau. Então que seja bom, através dos meios passíveis de serem julgados honrosos e louvados por todos. Como exemplo, Maquiavel dá o de Fernando, o católico, que pregando a paz e a fé é inimigo acérrimo de um e de outro, usufruindo, no entanto, de íntegra reputação aos olhos do vulgo.

Capítulo XIX

De como se deve evitar o ser desprezado e odiado

Evitar ser odiado ou desprezado, ministra Maquiavel. Não vemos os defeitos daqueles a quem amamos.
Não ser rapace nem usurpar dos bens e das mulheres dos súditos, instrui, sabiamente, o italiano. Restaria, então, apenas a ambição de poucos, facilmente refreável.
Não ser, ou não deixar transparecer ser, volúvel, leviano, afeminado, pusilânime, irresoluto. Deve-se evitar tais defeitos à exposição pública, como um nauta evita um rochedo, lembra o bom conselheiro.
O Príncipe deve deixar serem reconhecidas, em suas ações, grandeza, coragem, gravidade e fortaleza. Em suas decisões e ações dirigidas aos súditos, constituir-se irrevogável e resoluto para não propiciar dúvida alguma quanto à firmeza de suas idéias e dirimir qualquer intenção de o ludibriar ou o fazer mudar de idéia. Com isso, consegue-se reputação. E contra quem é reputado e reverenciado pelos seus, dificilmente se conspira ou se ataca.
Maquiavel destaca duas razões de receio: de ordem interna, os súditos; de ordem externa, os poderosos de fora. Aos de fora, boas armas e bons aliados. Com boas armas, têm-se bons amigos. Aos de dentro, fazendo com que haja satisfação popular.
Quem conspira, conspira contra o Príncipe odiado, não o bem amado pelo povo.
Em um conspirador há apenas medo, inveja e suspeita de punição.
No Príncipe há a majestade, as leis, a defesa dos amigos e do Estado e, se tiver a estima popular, haverá também o antídoto aos conspiradores. Como exemplo: os Canneschi mortos e preteridos em razão de Messer Giovanni (à época, uma criança de colo). Razão: benquerença e benevolência popular para com a casa dos Bentivoglio, que entregou o governo do Estado a um jovem parente distante, filho de um ferreiro, até Messer Giovanni atingir idade suficiente para reinar.
Que são conspirações para um Príncipe amado pelo povo? O problema então é quando é odiado. Deve mesmo temer tudo e a todos, adverte Maquiavel. Solução: não desprezar os grandes e satisfazer e contentar o povo, como na França, por exemplo, onde o Parlamento refreia a ambição e a insolência dos poderosos e, protege o povo daqueles, tirando, providencialmente, o peso do descontentamento dos grandes que seria dirigido ao Príncipe.
O que não ocorria no Antigo Império Romano, onde além da ambição dos grandes e da insatisfação do povo havia uma terceira dificuldade: a crueldade e a rapacidade dos soldados, causa da ruína de muitos imperadores ricamente enumerados, analisados e, após uma digressão impecável, Maquiavel chega a uma conclusão: o ódio e o desprezo foram causa de ruína. Ademais, finaliza, genialmente, dizendo que um Príncipe novo deve aproveitar e utilizar as ações e qualidades necessárias e imprescindíveis para a fundação e manutenção do Estado.

Capítulo XX

Se as fortalezas e muitas outras coisas que dia a dia são feitas pelo Príncipe são úteis ou não

Dentre tantas ações e deliberações, há de se verificar que nunca um príncipe novo desarmou os seus súditos, mas, ao contrário, ao encontrá-los desarmados, armou-os. De suspeitos, os novos súditos hão de se tornar fiéis e auxiliares. E se, por dificuldade de armar e beneficiar a todos os súditos, os que não sejam agraciados hão de divisar a impossibilidade de generalização e ainda compreenderão, conformados, que quem presta serviço, estando exposto a maiores perigos, por direito, seja bem recompensado, e não reclamarão a sua parte.
Ao contrário, o desarmamento, por precaução, gera dúvida e descontentamento por estar implícita a falta de confiança depositada, confundida como covardia. Restando a milícia mercenária, contra súditos insatisfeitos além de eventual poderoso inimigo esterno, o que se demonstra claramente indesejável.
Ao conquistar um novo Estado, anexando-o aos domínios, urge desarmá-lo, exceto àqueles que colaboraram com a conquista, mesmo assim até certo tempo, quando então as armas, por completo, passariam para o exército do Estado antigo.
Jamais se permita que haja divisões em um principado poderoso, pois a grandeza de um Príncipe é medida através da superação das dificuldades e oposições que se lhe movam.
Com astúcia, o Príncipe sábio deve fomentar inimizades contra si mesmo, a fim de se engrandecer através da vitória contra esses mesmos inimigos.
Aqueles que, de início, em geral, demonstram-se suspeitos ao Príncipe recente, com o tempo, tornam-se confiáveis, pois precisam, para crescer, de apoio no governo e, assim, são conquistados com facilidade. Gratos, com redobrada diligência, esforçam-se por demonstrar reconhecimento incondicional, em detrimento das divergências iniciais. Diferente daqueles que, por segurança, não precisando provar nada, negligenciam os interesses do Príncipe.
Maquiavel também mostra que é mais fácil conquistar a amizade daqueles que estavam contentes com o regime antigo do que manter a simpatia dos que, por descontentamento, fizeram-se seus inimigos e ajudaram ao Príncipe na conquista do Estado.
Com sua lucidez característica, Maquiavel disse que o Príncipe que tiver mais medo do seu povo do que de estrangeiros, que construa fortalezas. Mas a melhor fortaleza que pode existir é não ser odiado por seu povo. Seguro, no interior de uma fortaleza, dos inimigos esternos, resta ainda a preocupação com o inimigo interno. Seguro no interior da fortaleza da benquerença popular, mesmo que a fortaleza de pedra vire pó, haverá real segurança e incondicional lealdade no coração dos súditos.


BIBLIOGRAFIA


MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução: Lívio Chavier. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores). Cap. XVIII a XX.


Jorge Pi

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Algumas Conexões Lógicas entre a Origem e o Retorno, em Avicena


Nascido em Afsana, perto da Bojara, na Pérsia, no ano de 980 (d.C.), Avicena (Ibn Sina) deu continuidade à tradição filosófica aristotélica, conservada e transmitida por Alquindi e, em especial, Alfarabi. Foi importante por ter sistematizado a especulação anterior, mas, sobremodo, por ter aprofundado algumas noções fundamentais daquele último. Uma delas consiste na noção de existência (esse), que ele considerava um acidente que se acrescenta à essência (quidditas). Uma outra se refere ao conceito da unidade do intelecto agente, que se torna possível mediante a ascensão da potência no entendimento ao ato; por sua vez, tornando possível o acesso à noção metafísica do ser, visto que constitui no objeto formal próprio de tal entendimento. Enfim, a noção que faz distinção entre a essência e a existência nos seres criados, no que diz respeito à sua união em Deus.

De religião islâmica, sendo considerado como uma das mais destacadas personalidades da filosofia árabe, Avicena era dono de uma pena infatigável, tendo escrito sobre matemática, medicina e, com reconhecida originalidade de pensamento, destacou-se por sua primorosa desenvoltura no trato com a Filosofia. Além de escrever sobre as Leis de Platão, a Isagoge de Porfírio e o Almagesto de Ptolomeu, foi comentador aplicado de Aristóteles, indo da Metafísica às Categorias, passando por De Anima, pela Física, pela Retórica, entre várias outras.

Considerado como um grande sábio, ou grande mestre, islâmico, quando contava apenas com 10 anos de idade, já era conhecedor da gramática, da teologia e, espantosamente, mesmo para um mulçumano, já sabia de cor, integralmente, o Alcorão. Seu primeiro mestre era matemático, tendo, assim, o privilégio de tomar conhecimento, logo no início dos seus estudos, dos Elementos de Euclides e um pouco de lógica.

Neste trabalho, procuraremos lançar um olhar focado em algumas conexões lógicas verificadas no tratado I do livro que Avicena escreveu no ano de 1001 para o seu discípulo Sirazi, intitulado “A Origem e o Retorno”, no qual ele discorre sobre a origem e o retorno da alma a Deus.

Salta aos olhos a clara independência com que Avicena desenvolve o conteúdo desta obra. Apenas na introdução (“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso” ) é que podemos nos aperceber de que se trata de um filósofo de origem mulçumana. A partir do primeiro capítulo, Avicena se liberta de sua origem religiosa e alça vôo às regiões da mais pura reflexão filosófica, numa atitude universalista, bem diversa de outros autores medievos ocidentais que sempre se expressavam sob o penoso crivo da influência dominadora do pensamento teológico-“filosófico” cristianizado.

Observamos que no primeiro capítulo (“Sobre o conhecimento do ser necessário e do ser possível” ), baseando-se na lógica modal de Aristóteles, o grande sábio estabelece os conceitos de ser necessário e ser possível, bem como o de necessário por si e por outro. Em suma: o ser necessário é necessário e o possível, não, tanto no ser como no não ser. Ou: tudo o que existe, ou não existe, é possível. E o que é possível, assim o é de três maneiras: primeiro, o que é necessário absolutamente; segundo, até um certo momento; terceiro, o que existe agora em ato, mas é capaz de, no futuro, existir e não existir. O termo possível é mais amplo que o termo necessário, pois se aplica ao necessário e também ao não necessário. Sendo assim, possível é tudo aquilo que, para poder existir, precisa de algo fora de si mesmo. Necessário é tudo aquilo que não requer nada para existir, pois está implícita em sua essência mesma a sua própria existência.

No segundo capítulo (“Sobre que o ser necessário não pode sê-lo simultaneamente por si mesmo e por intermédio de outro” ), justifica-se que o necessário por si não pode simultaneamente por si e por outro ou haveríamos de reconhecer o absurdo como plenamente absoluto e verdadeiro, o que não se verifica plausível e demonstrável.

No capítulo III (“Sobre que o ser necessário por intermédio de outro, é por si mesmo ser possível” ), Avicena nos faz ver que quando algo é necessário por intermédio de outro, aí se há de localizar o ser possível.

“Sobre que o ser possível por si mesmo, somente é ser necessário por intermédio de outro” , este é o título do quarto capítulo e nele somos convidados a examinar a reciprocidade com o que está contido no capítulo III. Há aí um claro esquema de redução ao absurdo e também a introdução da noção de causa. Em Aristóteles, temos a noção de causa classificada em quatro tipos: a causa eficiente, que é o princípio da mudança; a causa material, que é aquilo de que algo surge ou através do qual chega a ser; a causa formal, como sendo a idéia ou o paradigma, ou como a própria essência em que é antes de ter sido; e a causa final ou o fim, a finalidade, a realidade que algo tende a ser. Em síntese, pode-se inferir deste capítulo que quando o ser possível por si mesmo é ser necessário por intermédio de outro o é como efeito-causa de algo e não como causa propriamente dita.

No capítulo quinto (“Sobre que não é possível que de dois decorra um ser necessário, e nenhum dos dois é ser necessário por intermédio do outro, e não há no ser necessário pluralidade sob qualquer aspecto”) está mais uma vez demonstrado que não há compatibilidade verdadeira, como exposto no capítulo II, entre o ser necessário por si e o ser necessário por outro, e que o ser necessário não comporta pluralidade ou partes, sob quaisquer aspectos que sejam, e sim unicidade. Além disso, está evidenciado também neste capítulo que alguma coisa pode ser simultânea com outra e, apesar disso, ser-lhe anterior quanto à essencialidade (lançando-nos uma luz de entendimento sobre a relação existente entre causa e efeito, essência e existência).

O capítulo sexto (“Sobre que o ser necessário por si mesmo é ser necessário sob todos seus aspectos”) aponta para a tese de que o ser necessário por si mesmo é forçosamente necessário sob todos os aspectos, caso contrário, o ser necessário por si mesmo teria dois aspectos. Por um aspecto seria ser necessário e por outro seria ser possível, dependentes ambos de uma causa. O que nos levaria a uma contradição já que então o ser necessário por si mesmo dependeria de duas causas. Portanto, inferimos que o ser necessário não está sujeito a mudança, por ser completo e perfeito em si mesmo.

No capítulo sétimo (“Sobre que o ser necessário se intelige e é intelecto por si, e o esclarecimento de que toda forma que não está numa matéria também o é, e que o intelecto, o inteligente e o inteligido são um”), Avicena nos mostra que dentre os atributos do ser necessário está o ser intelecto, inteligente e inteligido. Separado da matéria, o ser necessário tem caráter inteligível e não sensível, ao tempo em que não é corpo e não está sujeito aos acidentes próprios dos cormos materiais. Também faz distinção entre o modo de operar do intelecto e a imaginação e a memória. Examina as possibilidades do intelecto em ato e conclui que o mesmo é a forma separada inteligível. E sintetiza: inteligente é o intelecto no ato de inteligir.
Eis o título do capítulo oitavo: “Sobre que o ser necessário é por si bem puro”. Nesse capítulo, o filósofo persa vai tratar sobre a bondade do ser necessário (o “bem” aristotélico). Confrontando com o conceito de mal como privação do bem, Avicena retoma o noeplatonismo, além de pincelar a noção de bem como útil e difusivo de si mesmo.

No capítulo nono (“Sobre que o ser necessário é por si verdade pura”), através da combinação da noção platônica da verdade enquanto propriedade das coisas com uma noção aristotélica de uma propriedade do conhecimento.

Eis o que vem como título, no capítulo dez: “Sobre como a espécie do ser necessário não se predica de muitos. Por isso sua essência é completa” . Em razão de a espécie do ser necessário não ser plural, por isso mesmo ele não tem nem semelhante nem contrário. Deve-se lembrar que, no capítulo V, Avicena já estabelece a unicidade do ser necessário, sendo este capítulo baseado neste aspecto àquele citado acima.

Capítulo onze: “Sobre que o ser necessário é único sob vários aspectos e a prova de que não é possível que haja dois seres necessários” . Mais uma vez, a unicidade é evidenciada. Neste longo capítulo, Avicena estabelece a tese de que é impossível que a necessidade de ser seja comum, utilizando como recurso argumentativo os habituais dilemas e reduções ao absurdo. Chega à conclusão de que o ser necessário é uno, quanto à espécie, ao número, à indivisibilidade, à perfeição, mas também em razão de que seu ser não é por outro, mesmo que este outro não seja propriamente de seu gênero.

No capítulo XII (“Sobre que ele por si é amável e amante, deleitável e deleitante e que o deleite é a percepção do bem adequado”), o ser necessário é apresentado como beleza e esplendor puros.

Adentramos então no capítulo XIII (intitulado: “Sobre como o ser necessário intelige a si mesmo e as coisas”), importante justamente por nos revelar algo precioso: o ser necessário não intelige as coisas a partir das próprias coisas, com o inteligir como operação acidental; mas sim através de sua própria essência, já que é o princípio de todos os seres completos (incorruptíveis) ou não.

Capítulo XIV: “Sobre a confirmação da unicidade do ser necessário no sentido de que sua ciência não é diferente de seu poder, de sua vontade, de sua sabedoria e de sua vida quanto ao que é entendido, mas tudo isto é um só, e a pura unidade de sua essência não é dividida por nada disso”. Aqui, Avicena trata da unidade real dos atributos do ser necessário e da pluralidade desses mesmos atributos, no que se refere ao nosso conhecimento direto deles. A ciência (ou o conhecimento) na vontade do ser necessário é a sua própria vontade de também o seu próprio poder. Sua vontade difere da nossa, pois precisamos de várias faculdades para realizar o que nos cabe. Assim, sua unidade pura não é dividida por nada.

No capítulo XV (“Sobre a confirmação do ser necessário”), Avicena conclui o que escrevera até aí. Confirma a necessidade da existência do ser necessário e afirma que o ser possível tem como fundamento último o próprio ser necessário.

É impossível a cada ser possível ter junto de si uma causa também possível. Esse é o argumento central contido no capítulo XVI (“Que cada ser possível não pode ter junto a ele uma causa possível até o infinito”). Também é dito que o ser necessário não pode ser constituído por seres possíveis.

No capítulo XVII (“Não é possível que os seres possíveis sejam causa um do outro de maneira circular e num mesmo tempo, mesmo que seu número seja finito”), Avicena considera sobre se o encadeamento das causas sempre volta ao ponto de partida e chega à conclusão de que isto não é possível pois, se o fosse, cada um seria causa de si mesmo e efeito de seu próprio ser.

Capítulo XVIII: “Dedicação à confirmação do ser necessário, e o esclarecimento de que os [entes] que começam a ser, começam a ser pelo movimento. Entretanto, necessitam de causas permanentes e o esclarecimento das causas motrizes próximas e que todas são variáveis” . Sendo imprescindível que haja uma coisa que seja ser necessário, em razão de que se todos os seres fossem seres possíveis, haveria a possibilidade de terem começado ou não a existir; então, tem de haver uma causa necessária e certa no primeiro princípio, tendo fincado raízes neste, porém com possibilidade de continuidade como fruto do movimento do qual fora gerado e que precisa da sucessão ininterrupta de instantes a se prefigurarem no tempo.

No capítuloXIX (“Sobre o esclarecimento de que a permanência de cada ser que começa a ser é por intermédio de uma causa, uma premissa. Para ser auxiliar ao próximo mencionado anteriormente”), vemos um argumento apontando para a necessidade de uma causa para a permanência do ser (através de uma causa necessária). O ser possível depende de outro quanto ao ser (de uma causa). O começar a ser advém da causa mesma pois é ser possível e, assim, poderia não começar a ser. Avicena diz que dispor o não-ser como condição para que o possível seja verdadeiro não é correto, pois o não-ser é aquele aquilo que sucede e permanece com o possível em certas formas de existir (não-sendo). Desta forma, ele argumenta para fins de evidenciar a necessidade de uma causa para a permanência e a razão de ser dos seres causados.

“Sobre que os começos dos seres engendrados levam às causas que movem com movimento circular, premissa, portanto, sobre como se move a natureza e que ela se move por causas às quais se une e como começa a ser” : este é o título do capítulo XX. Nele, Avicena argumenta a respeito do movimento natural. Sucintamente, ele se dá a partir de uma disposição inadequada para uma disposição adequada.

O capítulo XXI se intitula: “Uma outra premissa: o que se move pela vontade é de essência variável e como resulta sua variação” . Ter essência variável pré-estabelece assim o movimento cuja causa primeira é um desdobramento voluntário e universal sob o impulso de uma imaginação permanente.

“Que a distinção de disposições começa a partir da força violenta quando move” (capítulo XXII). Movimento violento: irresistibilidade é a tônica e impulsão atualizada é a ação motora.

No capítulo XXIII, Avicena fala “Sobre a totalidade dos atributos do Ser Necessário” . Resumindo e agrupando a totalidade dos atributos do ser necessário, ele relembra que algo é necessariamente o ser necessário, não tendo sua existência por intermédio de outro. E que a vida, a ciência e o poder do ser necessário são uma só coisa.

No capítulo seguinte (XXIV), Avicena faz-nos recordar da confirmação indubitável do ser necessário pela via do possível e do necessário. Agora aborda a via do movimento ao estabelecer que não há como provar o porquê da primeira causa, pois ela é incriada. E intitula assim o capítulo: “Indicação de qual é este sistema de exposição, repetição do sistema habitual. Explicação da diferença entre a via que passou e a via que começa” .

Por fim, vejamos o que Avicena tem a nos dizer no capítulo XXV, intitulado “Sobre a confirmação do motor imóvel de todo movimento” . Nele, podemos vislumbrar a tese de que há uma causa de movimento para todo corpo que se move, observável facilmente nas causas externas (como quando algo é arrastado). Porém existem os casos em que não se pode enxergar a ação de um motor externo. E, no entanto, corpo não implica nem repouso nem movimento, por si mesmo. Mas é apenas em uma direção e em somente um sentido que o deslocamento se manifesta. Sendo assim, em tudo e em toda e qualquer região do que se concebe como espaço há a ação única em momentos e presenças diversas do motor imóvel, igualmente único e presente em tudo.

Portanto, em Avicena a lógica aristotélica, em sua mais pura e rigorosa demonstração, submete as mais ousadas reverberações do espírito humano, ao tender seu entendimento racional para a confirmação do princípio primeiro de tudo, bem como sua irrefutável unicidade e seus atributos peculiarmente verdadeiros. E, num encadeamento cuidadoso perpassado de lucidez, vai se construindo um edifício conceitual capaz de tangenciar a possibilidade do ser possível adentrar na estrutura colossal do necessário ser.

Jorge Pi



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


ISKANDAR, J. I. Avicena – a Origem e o Retorno. Porto Alegre: EDPUCRS, 1999.
MORA, J. F. Dicionário de Filosofia – Tomo I. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Walter Benjamin - Os Cacos da História (Gagnebin, J.M.)






Os Anos do Exílio


A autora considera a vida e a obra de Walter Benjamin como tributárias de um fracasso exemplar; não obtendo nunca êxito nos seus amores ou em sua profissão. Suas obras foram “pequenas vitórias” e “grandes derrotas”, segundo suas próprias palavras.
O suicídio de Benjamin em 1940 concretiza um gesto por ele pensado em diversas ocasiões.
Os sete últimos anos de sua vida consistiram numa fuga contínua imposta tanto pela perseguição política quanto pela própria sobrevivência material. Um relatório detalhado de suas despesas, feito em 1937, faz-nos perceber em qual situação ele haveria de viver e trabalhar até a sua morte.
A sua principal obra (Paris, a Capital do Século XIX), introduzida teoricamente pelas suas teses Sobre o Conceito de História, permaneceu inacabada; assim como o seu Trabalho sobre as Passagens (Passagenarbeit), na qual havia pretensões de ser uma grande arqueologia da época moderna ou mesmo um estudo histórico-filosófico.
Para Benjamin, o impacto do tratado de não-agressão feito em 23 de agosto de 1939 entre Stalin e Hitler seria o começo do fim. O que propiciaria o desencadeamento de uma campanha anticomunista na França bem como uma grave crise de confiança na capacidade de resistência dos comunistas diante do fascismo.
Benjamin, apesar de completamente esgotado física e psiquicamente, tentou organizar uma revista literária em pleno Campo de Trabalhos Voluntários, próximo a Nevers, com o intuito de mostrar aos franceses a qualidade de seu nível intelectual, chegando a ministrar um curso de Filosofia a troco de três gauloises por participante.
De volta a Paris, escreve as teses Sobre o Conceito de História, mencionado acima, onde há uma tentativa de elaborar uma concepção de história afastada da historiografia tradicional da classe dominante bem como da historiografia materialista triunfalista.
Sua originalidade consistia num não contentamento com o tempo linear contido na historiografia oficial, buscando fundar uma historiografia que não fizesse do presente o resultado previsível de um desenvolvimento necessário mas que soubesse revelar o possível, assim no presente tanto quanto no passado.

Judaísmo e Materialismo

Walter Benjamin era interessado pela teologia judaica e, conflituosamente, também voltava seus pensamentos para a sua teoria materialista da produção cultural. Ambíguo, do ponto de vista político, seus ideais reformadores eram unicamente espirituais e focados na educação.
Opondo-se à esquerda socializante, no entanto compartilhava de sua crítica à sociedade burguesa. Ao mesmo tempo, discutia extensamente com seu amigo Scholem sobre a teologia e a mística judaicas.
Entre o “real” e o “utópico”, ele recusava a pensar que o Reino de Deus deva se concretizar na terra. No seu Fragmento Teológico-Político ele recorre justamente à figura do Reino para criticar as correntes judaicas e sionistas de esquerda que, após a instauração da república de Weimar, atribuía um potencial escatológico às lutas revolucionárias.
Em sua concepção, somente o Messias poderia concluir todo acontecimento histórico em razão de libertá-lo de sua relação com o próprio messianismo. Então o Reino de Deus não é o telos da dynamis histórica. Deve ser necessariamente percebida uma distância entre a reflexão teológica (judaica) e a crítica política (marxista). Apesar de que estas duas ordens só possam ser concebidas em conjunto.
Numa carta a Scholem, de janeiro de 1930, Benjamin fala sobre suas Passagens de Paris confessando a sua necessidade de ler Hegel e O Capital, como também Gide, Jouhandeau, Green e as disputas entre os surrealistas. Porém também lia Bloch e Lukács e autores como Julien Green ou Kafka.
De maneira irônica e lúcida, Benjamin disse que nunca pode pesquisar ou pensar senão num sentido teológico. Ou seja: de acordo com a doutrina talmúdica dos quarenta e nove níveis de sentido de cada passagem da Tora. Reivindicando assim a tradição mística, ele quer nos fazer notar que a crítica materialista não tem por fim chegar à verdade definitiva sobre uma obra ou autor; mas tornar visível camadas de sentido até então ignoradas.

A Verdade da Crítica

Todos os projetos acadêmicos de Walter Benjamin findaram em fracasso, quer por sua origem judaica, quer pelo seu engajamento político ou até pela crise financeira e econômica da república de Weimar iria atingir em cheio a classe média e mais obviamente um intelectual que vivia como escritor.
Além de ser filho de família abastada, o fato de ser “homem de letras” o levava, anacronicamente, a se esquivar da idéia de vender seus escritos e assim ter que vê-los transformados em mercadorias.
Benjamin era rico em artifícios para conseguir certos mecenas que o sustentassem e financiassem suas pesquisas.
Em 1925, ele vê sua tese de livre-docência na Universidade de Frankfurt recusada por absoluta incapacidade de formulação de um julgamento à altura do texto apresentado. Este fato acabou por liberar sua veia crítica do ensaísta. Sem mais nenhum escrúpulo, ele não mais poupa seus futuros colegas em nome de uma carreira e descarrega todo o seu ímpeto contra a “ciência literária burguesa” que, aliás, sempre detestara.
De início critica seu caráter a-histórico e apologético. Diz que aquilo que julgamos comum entre o passado e o presente, e que apressadamente designamos como a verdade do passado é sempre uma projeção de nós mesmos.
No que concerne à verdade da obra, o crítico Benjamin distingue o “teor coisal” (Sachgehalt), isto é, material e histórico, e o “teor de verdade” (Wahrheitsgehalt). A procura da verdade exige um decifrar paciente da distância histórica.
A mesma recusa de imediatidade caracteriza a teoria benjaminiana da alegoria, categoria central de sua obra a partir do ensaio A Origem do Drama Barroco Alemão (1925). A questão da alegoria aparece também no contexto do debate marxista sobre o realismo na arte, inaugurada na Alemanha no final dos anos 30. Benjamin é considerado o primeiro teórico a ter buscado a reabilitação da alegoria na época moderna.
Os ensaios de Benjamin sobre Baudelaire introduzem uma outra categoria essencial da modernidade, a categoria da “aura”, o melhor ainda, a perda da aura. Na época moderna, a arte é secularizada: o artista não é mais comparável a um santo e não mais se cultuam as suas obras.
Numa arte como a fotografia ou o cinema, a reprodutibilidade é parte inerente da produção artística. Torna-se, portanto, discutível a “originalidade” ou a “autenticidade” de uma obra por ser a primeira de toda uma série.

Memória e Libertação

Da crítica materialista benjaminiana sobre a literatura surge uma reflexão sobre a história, como um conjunto dos eventos do passado e como a sua própria escritura.
Benjamin retoma a crítica dos adversários do historicismo que o condenavam naquilo que justamente constituía sua força: um relativismo total. Ele aprofunda mostrando como o historicismo, sob a aparência de uma pesquisa objetiva, acaba por mascarar a luta de classes e por contar a história dos vencedores.

“A pesquisa histórica se curva às leis profundas da acumulação capitalista: seu objeto torna-se uma propriedade (cultural), a fonte de um enriquecimento (espiritual) do indivíduo” (pág. 56).

Então, a tarefa do historiador materialista deve ser a de saber ler e escrever uma outra história, uma anti-história, uma história a “contrapelo” ou a história da barbárie, sobre a qual sempre se impõe a da cultura dominante.
Mas para escrever a história dos vencidos exige a aquisição de uma memória não existente nos livros da história oficial. Como nos modos da busca proustiana do tempo perdido e da narração informativa do jornalismo moderno.
Como escreveu P. Szondi, a filosofia da história de Benjamin se desdobra no tempo paradoxal do futuro do pretérito. Ela também emprega uma noção de “salvação” (Rettung) em que marxismo e teologia se fundem.
Os cacos dos frágeis vasos quebrados e dispersos num amontoado de ruínas que abarcam os acontecimentos históricos devem ser observados e analisados com o intuito de reunificação dos diversos fragmentos sem escamotear as rachaduras, mas justamente investigar a real natureza e origem destas fraturas na história conhecida, oficial e pretensamente linear.

Resumo de Jorge Pi

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


GAGNEBIN, J. M. Walter Benjamin – Os Cacos da História. São Paulo: Editora Brasiliense, 2ª Ed. 1993.



segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Um pouco mais de Descartes...



Análise de Alguns Problemas Contidos no
“Discurso do Método” (da Primeira à Quarta Parte)


Na Primeira Parte:

René Descartes inicia o seu discurso estabelecendo como óbvia a existência de bom senso, ou razão, ou o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, na natureza humana, evidenciada pela certeza intrínseca, em cada pessoa, de que a possui. Esse bom senso, ou essa razão, apesar de aparentemente existir em maior ou menor grau neste ou naquele indivíduo, manifestar-se-ia por igual no interior de cada um. A diferença estaria, então, no direcionamento e na condução da aplicação da razão: o método utilizado. Adverte que alguém pode ser uma boa alma e, no entanto, por aplicação indevida da razão, pode também ser capaz de sucumbir aos maiores vícios.
Como exemplo, toma a si mesmo. Descartes se considera normal e, diante de muitos, aquém, mesmo, na rapidez do pensamento, na nitidez e distinção da imaginação e na amplidão e instantaneidade da memória, qualificando, conseqüentemente, um espírito de perfeito, quando detentor de pensamento, imaginação e memória em excelência de operacionalização.
Então propõe o seu método para aumentar gradativamente o conhecimento e atingir, aos poucos, o grau máximo possível a um ser humano. E ele o teria aplicado em si mesmo, garantindo ter alcançado sucesso na busca da verdade; empreendimento tal considerado por Descartes como o mais nobre dentre todos os que ocupam a humanidade.
Humilde, reconhece a possibilidade de estar equivocado. Num outro extremo, completamente confiante na firmeza estrutural do seu método, ousa afirmar que está certo. Diplomático, sugere apenas revelar um método pessoal de condução de sua razão e não a dos outros, passível, no entanto, de utilização segura e eficaz por quem quer que seja. Astuto e sagaz, busca angariar seguidores. Sutil e contumaz, busca escapar à censura, em razão de uma mínima falha do seu método, que porventura venha a ser encontrada. Envolvente, cativa e seduz o leitor/buscador curioso.

Na Segunda Parte:

...Fechado num quarto bem aquecido... No inverno da Alemanha, no período da Guerra dos 30 Anos, René Descartes, absorto em seus profundos pensamentos toma consciência de que não há perfeição nas obras compostas por diversos mestres se comparadas com as que foram trabalhadas por apenas um. Assim, chega à conclusão:...trabalhando exclusivamente em obras alheias, é difícil fazer coisas completas.
Começou, então, a duvidar da veracidade absoluta da herança cultural recebida do passado, lentamente desenvolvida e confusamente assimilada como própria, uma vez que todo o conhecimento depende dos nossos sentidos e juízos que não são nem puros e nem sólidos e, tampouco, seguros.
Então, todo o conhecimento adquirido deveria ser cuidadosamente analisado em toda a sua estrutura para ser descartado ou mesmo conservado, a depender da validade, ou não, encontrada sob o crivo de minuciosa verificação.
Quando diz: È muito difícil tornar a erguer grandes corpos depois de abatidos... René Descartes revela toda a dificuldade de reestruturarmos um universo de pensamento solidificado e absolutamente aceito como verdadeiro, sendo que nós mesmos somos enredados no dilema terrível entre a acomodação sonolenta dos nossos conceitos preestabelecidos ou a enriquecedora redescoberta de nossa concepção de mundo. E, como a justificar o motivo pelo qual comumente sedemos à tentação de permanecermos prisioneiros de velhos erros, continua:...são eles (os nossos conceitos preestabelecidos), quase sempre, mais suportáveis do que se fossem mudados, da mesma maneira por que os grandes caminhos que circulam as montanhas vão aos poucos tornando-se batidos e tão cômodos, à força de serem freqüentados, que é muito melhor segui-los do que procurar caminhar mais reto, escalando rochas e descendo até o fundo dos precipícios.
Mas a sua verdadeira intenção não era a mudança impensada e gratuita, ou revolucionária, como aqueles de temperamentos perturbadores e inquietos que, não sendo chamados, nem pelo nascimento nem pela fortuna, a dirigir os negócios públicos, não cessam de fazer, em idéia, alguma nova reforma. Ao contrário, não é o mundo que Descartes quer mudar, mas sim a si mesmo. Porém, ao pretender fazê-lo, ele tem plena consciência das implicações relativas aos abalos nas estruturas conceptuais do próprio mundo. E este mesmo mundo seria composto de dois tipos de espírito, segundo Descartes: os precipitados e os prudentes (... tendo bastante razão ou modéstia para julgar-se menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso do que alguns outros...).
Então, foi que Descartes estabeleceu quatro preceitos para se chegar ao conhecimento da verdade a que é dada ao homem compreender, enquanto homem: 1º - Nunca aceitar como verdadeiro algo que não se conheça evidentemente como tal, nem pela precipitação nem pela prevenção, mas somente aquilo que se apresente de modo claro e distinto ao espírito e de que não se tenha a menor dúvida; 2º - Dividir cada dificuldade a analisar em tantas partes quanto possível para chegar à resolução almejada; 3º - Direcionar a ordem dos pensamentos do mais simples ao mais complexo; 4º - Fazer, em cada análise, enumerações e revisões minuciosas, completas e gerais, a ponto de ter certeza da inexistência de omissão alguma.
Desta forma, mais adiante, ele afirma que o que mais o satisfazia neste método, era que por meio dele, ele estava seguro de usar, em cada coisa, sua própria razão, se não perfeitamente, ao menos da melhor forma...possível.

Na Terceira Parte:

René Descartes prepara então a formação da moral provisória: munir-se de segurança efetiva para efetivação de mudança segura.
Pauta-se, conforme os passos descritos abaixo.
Primeiro: obedecer às leis do país em que se mora e conservar-se na religião da infância, em tudo o mais, usar da moderação na vida. Assim por extrema necessidade de isolamento das preocupações mundanas, bem como tranqüilidade para propiciar o exercício constante e ininterrupto do pensar filosófico.
Segundo: ser tão firme e tão resoluto quanto possível nas ações; como o viajante perdido na floresta, preferir andar sempre em linha reta a vagar de um lado a outro ou manter-se parado. Renunciar as próprias opiniões, assim como a de outros mais, se estas se demonstrarem inócuas diante de abalizadas heranças culturais do passado.
Terceiro: procurar vencer a si mesmo, à fortuna; modificar antes os próprios desejos do que a ordem do mundo e habituar-se à crença de não haver nada tão inteiramente em nosso poder como os nossos pensamentos, tanto que após fazermos o melhor possível e não conseguirmos atingir o objetivo é que atingimos a absoluta impossibilidade de concretização. Batalha travada constantemente em virtude da natureza mesma do ser pequeno que serve de ninho para o Ser que, possuidor da Razão, encontra-se adormecido à espera da disciplina metodológica que advenha em seu socorro, propiciando-lhe manifestação.

Na Quarta Parte:

...Considerando que os mesmos pensamentos que temos quando acordados podem ocorrer-nos quando dormimos, sem que haja, então, um só verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que outrora me entraram no espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos.
Que dizer da incerta realidade em que estamos inclusos? Aparentemente estamos despertos neste grandioso mar de vibrações eletromagnéticas, no entanto quão comum o encontrarmo-nos totalmente inconscientes de nós mesmos, em nossa real identidade de ser, por estarmos projetados em personagens fictícios na trama das relações sociais. Em suma, quantas vezes somos outros e não apenas nós mesmos em nossa vida, por pura necessidade de participação no sonho coletivo das interações humanas?
Mas, logo depois, observei que, enquanto pretendia assim considerar tudo como falso, era forçoso que eu, que pensava, fosse alguma coisa. Percebi, então que a verdade: penso, logo, existo, era tão firme e tão certa que nem mesmo as mais extravagantes suposições dos céticos poderiam abalá-la. E, assim julgando, concluí que poderia aceitá-la sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que buscava.
É mesmo o instante em que nos despertamos de nossa inconsciência psicológica diante da vida, naquilo que se configurava como um quase sonho. Então percebemos que somos, ao pensar, e, pensando, despertamos para o fato de que existimos, independentemente do, ou em comunhão com, o mundo de fora.
...Tendo refletido sobre o que duvidava e que por conseguinte meu ser não era de todo perfeito, pois...perfeição maior que duvidar era conhecer, deliberei procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu , e conheci, com evidência, que algo deveria existir de natureza mais perfeita...: ...Deus.
Perfeição não é para homem. Para homem, é construção de caminho para Perfeição.


Análise de Alguns Problemas Contidos nas
“Regras para a Direção do Espírito” (da Primeira à Décima Segunda Regra)

Na Regra I: Os estudos devem ter por finalidade a orientação do espírito...
De nada vale o acúmulo da inutilidade. Basta que seja trilhado uma pequena parte do caminho para a perfeição, desde que haja consciência de construção efetuada.
Na Regra II: É melhor não estudar nunca, do que se ocupar de objetos de tal modo difíceis que, não podendo distinguir os verdadeiros dos falsos, vejamo-nos tomar como certo o que é duvidoso já que neles não há tanta esperança de aumentar a instrução como o perigo de diminuí-la.
A honestidade é posta à prova diante da vaidade da ostentação da falsa condição de douto, quando de fato tão somente se ignora.
Na Regra III: Entendo por intuição não o testemunho flutuante dos sentidos nem o juízo enganador de uma imaginação de composições inadequadas, mas o conceito do espírito puro e atento, tão fácil e distinto, que não fique absolutamente dúvida alguma a respeito daquilo que compreendemos, ou o que é a mesma coisa, o conceito do espírito puro e atento, sem dúvida possível, que nasce apenas da luz da razão, e que, por ser mais simples, é mais certo que a mesma dedução, a qual, todavia não pode ser malfeita pelo homem...
À luz da Razão, percebe-se nitidamente a real natureza de algo, sua procedência e seu objetivo último. Intuir nada mais é que, em intenção de espírito, sobrevoar e observar do alto o observador, o observado e tornar-se a observação mesma, numa cumplicidade cognitiva.
Na Regra IV: O método é necessário para a busca da verdade.
Ao marinheiro, a bússola. Ao filósofo, o método.
Na Regra V: Todo o método consiste na ordem e disposição das coisas, para as quais é necessário dirigir a agudeza do espírito para descobrir a verdade.
A devida atenção concentrada naquilo que mais interessa: o conhecimento como descoberta da verdade.
Na Regra VI: O segredo de toda arte está em buscarmos com diligência em todas as coisas o que há de mais absoluto.
Descartar o supérfluo e os atalhos no caminho. Caminhar, interiormente, sempre em linha reta, mesmo que o caminho exterior se nos apresente sinuoso.
Na Regra VII: Quando um conhecimento não se pode reduzir à intuição, não nos fica, depois de romper todas as cadeias de silogismos, outro caminho senão o da enumeração, no qual devemos acreditar inteiramente. Todas as proposições que temos deduzido umas de outras já estão reduzidas a uma verdadeira intuição.
Intuir é confiar. Deduzir é creditar.
Na Regra VIII: Para não estar sempre incerto sobre o que pode e para evitar que não trabalhe em vão e sem reflexão, antes de abordar o conhecimento das coisas em particular, é preciso haver examinado cuidadosamente, uma vez na vida, que conhecimentos a razão humana é capaz. Há limites aos quais, incondicionalmente, temos que nos conformar enquanto criaturas humanas, senão o caminhar seria um não caminhar, o que equivaleria a uma farsa.
Na Regra IX: É um defeito comum aos mortais considerar mais belo o que é mais difícil...
Não se pode dar o último passo antes do primeiro, a menos que o percurso se componha de um passo apenas, mas, aí então, o último (o mais difícil) seria o primeiro (o mais fácil). Aliás, tem-se que se encarar cada simples passo como se difícil fosse, pois nunca se sabe dos reais perigos e traiçoeiras armadilhas a povoarem o percurso.
Na Regra X: Para que o espírito se torne sagaz, deve exercitar-se em investigar as mesmas coisas que já foram encontradas por outros e em percorrer com método todos os menos importantes artifícios dos homens, e sobretudo aqueles que manifestam ou supõem.
Só se sabe Caminho, caminhando. Mas que seja passo a passo, com cautela e critério, pois o piso ora é suave, ora pedregoso. Pegada no chão é sinal que se nos mostra à frente e sedimento na areia para os que sucedem.
Na Regra XI: Depois da intuição de algumas proposições simples, se delas tirarmos outra conclusão, é útil percorrê-las por meio de um movimento contínuo do pensamento e em nenhum lado interrompido, refletir sobre suas mútuas relações e, fazendo todo o possível, conceber distintamente várias coisas ao mesmo tempo; pois é assim que nosso conhecimento se torna muito mais certo e é aumentada a capacidade do espírito.
Visão holística da realidade através dos diversos ângulos possíveis ao nosso alcance.
Na Regra XII: No que diz respeito ao conhecimento, duas coisas são necessárias ter em conta, a saber, nós, que conhecemos, e as coisas a conhecer (Dialética do Caminhar).


BIBLIOGRAFIA


Descartes, R. DISCURSO DO MÉTODO e REGRAS PARA A DIREÇÃO DO ESPÍRITO. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002.


Jorge Pi

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Resumo da Introdução de “Sobre a Pedagogia” (Immanuel Kant)



Quer seja enquanto infante, educando ou discípulo, o homem é a única criatura que precisa ser educada.
Isso não ocorre com os animais. Estes somente requerem nutrição, mas não cuidados, ou preocupações da parte dos pais quanto ao uso nocivo das forças de sua prole. Se, como acontece com os nossos bebês, os filhotes dos animais gritassem, ao nascer, seriam presas fáceis aos seus muitos predadores.
A animalidade se torna humanidade, através da disciplina. É através da disciplina que o homem é impedido de se desviar de sua destinação à humanidade, a despeito de suas evidentes inclinações animais.
Há uma razão exterior nos animais que os incita a serem tudo aquilo o que podem ser. O homem, sem instinto, mas provido de uma razão interna, precisa, no entanto, de outros seus semelhantes que o auxiliem na formação do projeto de sua conduta.
Desse modo, as qualidades naturais da humanidade são pouco a pouco extraídas da própria espécie humana; sendo, cada nova geração, educada pela anterior.
Como instrumento que auxilia a extirpação da selvageria no homem, a disciplina é a parte negativa da educação; já a instrução consiste na contraparte positiva, enquanto recurso formador e acrescentador de toda uma gama de herança cultural acumulada, preservada, transmitida, e aumentada, no decorrer dos séculos. Desta forma, da selvageria, o homem, enquanto espécie, é levado às leis da humanidade. E isto ocorre desde a infância, quando, no âmbito da interação com as regras básicas da escola, por exemplo, ele é levado a permanecer sentado, enquanto que o seu desejo imediato é o de se lançar ao movimento, indisciplinadamente; bem como a paulatina adequação à obediência, não ainda com o intuito de aprender, necessariamente, mas, decerto, dominar e restringir sua inclinação à liberdade. Como se pode verificar, no texto:
“Mas o homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que, depois que se acostuma a ela por longo tempo, a ela tudo sacrifica. Ora, este é o motivo preciso, pelo qual é conveniente recorrer cedo à disciplina; pois, de outro modo, seria muito difícil mudar depois o homem”[1].

E, se assim não fosse, o homem sucumbiria a todos os seus caprichos. Portanto, desde cedo, é preciso acostumá-lo aos princípios da razão, através de cuidados e formação, ou, disciplina e instrução, diferentemente de como ocorre entre os animais.
De fato, não é possível o surgimento de um verdadeiro homem, senão através da educação. Aliás, o homem é aquilo que resulta desta última.
Quem é desprovido de cultura, certamente pode ser caracterizado como um bruto. Outrossim, na inexistência de disciplina ou educação, o homem não é nada além de um selvagem. Há de se reconhecer, ainda mais, que a falta de disciplina ainda é pior que a de cultura. Pois cultura é passível de ser adquirida, a partir de dado momento; enquanto que um defeito de disciplina é de difícil correção.
Todavia, é entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre aprimorada, graças às lapidares diligências e aos maravilhosos frutos obtidos no contínuo e ascendente processo da educação. Desta forma, inegavelmente, abre-se uma perspectiva de felicidade para o futuro de toda espécie humana.
Mesmo que não o possamos realizar, tal projeto educativo, no mínimo, é um ideal demasiado nobre.
Sobremaneira, levando-se em conta que toda idéia não é senão a perfeição daquilo que ainda não se realizou; longe de ser tido como impossível, desde que haja a necessária autenticidade em sua enunciação, bem como a tenacidade suficiente para a ultrapassagem dos inevitáveis obstáculos do caminho; o referido projeto acima é mesmo possível e perfeitamente realizável.
Com as atuais feições do processo educativo, no entanto, encontramos muita inconveniência a inviabilizar qualquer projeto pedagógico que tenha como meta o atingimento pleno e efetivo da finalidade da existência humana.
Isso porque, mesmo sem o saber, os animais cumprem o seu destino, conforme lhes é imposto, pelas operações sutis da natureza, o imperioso e equacionador direcionamento das forças instintivas, em suas ações e reações; já o homem é compelido a tentar atingir a sua finalidade, atrelado, todavia, a uma ancestral necessidade de elucidação conceituação, em todas as suas ações e deliberações no mundo, e sempre com a mediação de outros mais experientes na caminhada rumo ao estado de humanidade.
Entretanto, a educação é, na verdade, uma arte cuja prática é aperfeiçoada somente após várias gerações.
Apesar disso, é de seu interior que o homem colhe, em verdade, a sua felicidade ou o seu extremo oposto. Assim, tornar-se melhor ou criar em si a moralidade é a grande missão humana. E, justamente, a educação, o seu mais árduo problema.
Mas, então, a educação do indivíduo deve imitar a cultura herdada de gerações anteriores?
Em verdade, não se deve educar tendo como parâmetro o estado atual da espécie humana, mas segundo a idéia e um estado futuro bem melhor.
Ao contrário de educar as crianças para o mundo atual, mergulhado na mais indiscutível corruptabilidade, dever-se-iam ser educadas de tal forma a possibilitar um estado melhor no futuro.
Esse projeto deve ser de cunho cosmopolita, mas sem que, com isso, permita-se ao bem geral vir em prejuízo do particular.
A boa educação é a causa de todo o bem deste mundo.
E a quem é dada a tarefa de melhorar o mundo? Dos governantes ou dos governados? E estes últimos devem se aperfeiçoar por si mesmos, indo ao encontro dos esforços dos bons governantes?
Se tal iniciativa deve partir dos governantes, decerto, deve-se ter em conta: “uma árvore que permanece isolada no meio do campo não cresce direito e expande grandes galhos”[2], pois “aquela que cresce no meio de uma floresta cresce ereta por causa da resistência que lhe opõem as outras árvores, e, assim, busca por cima o ar e o Sol”[3]. “Não se pode esperar que o bem venha do alto, a não ser no caso em que lá a educação seja primorosa”[4].
Pessoas competentes e bem formadas deveriam, então, dirigir as escolas. Muito embora, os poderosos considerem seu povo como animais a serem multiplicados, no máximo, com habilidades suficientes para a sua apropriada utilização a serviço dos desígnios governamentais.
Com a educação, busca-se ser disciplinado e tornar-se culto, prudente e moral. Além disso, busca-se também “ser ou treinado, disciplinado, instruído, mecanicamente, ou ser, em verdade, ilustrado”[5].
De preferência, e isto desde a infância, deve-se buscar aprender a pensar e não, meramente, o treinamento.
Ademais, através da educação, que se odeie o vício pelo próprio vício e não pela proibição imposta por Deus, ou porque assim Ele o ordene.
Afinal, como fazer de um homem feliz, sem que este seja também, indissociavelmente, moral e sábio?
E qual deve ser a duração da educação, senão até que seja alcançado o auto-domínio? Ou até que nos tornemos pais ou mães, tornando-nos, em conseqüência, educadores?
Por fim, conciliar submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade é o maior problema da educação. Se tal constrangimento é necessário, como cultivar a liberdade? Por ser difícil o bastar-se a si mesmo, é forçoso suportar privações e tornar-se independente.
Em suma, a educação consiste na cultura escolástica (habilidade); na formação pragmática (prudência) e no cultivo da moral (moralidade). É uma construção, um processo, no qual, cada fase, cada peculiar característica, insere-se em sua respectiva e adequada idade, com o passar dos anos. Aliás, como Kant mesmo escreveu, ao final da introdução: “mostrar-se hábil, prudente, paciente, sem astúcia como um adulto, durante a infância, vale tão pouco como a sensibilidade infantil na idade madura”[6].






BIBLIOGRAFIA


KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia - Introdução. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Ed. UNIMEP, pp. 11-36.
[1] KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia - Introdução. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Ed. UNIMEP, p. 13.

[2] KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia - Introdução. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Ed. UNIMEP, pp. 23-24.
[3] Idem, p. 24.
[4] Idem.
[5] Idem, p. 27.
[6] KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia - Introdução. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Ed. UNIMEP, p. 36.
Jorge Pi