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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Como conduzir homogeneamente os sujeitos



Consideremos as duas citações abaixo, explicitando a problemática da educação de encontrar um modo de conduzir homogeneamente os sujeitos.


“Expressando-o de modo sucinto, existem duas característica humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões”.

(...)

“Mas, pela mesma razão, as limitações da capacidade de educação do homem estabelecem limites à efetividade de uma transformação desse tipo na cultura. Pode-se perguntar se, em que grau, seria possível a um ambiente cultural diferente passar sem as duas características das massas humanas que tornam tão difícil a orientação dos assuntos humanos”.

(Freud, “O Futuro de uma ilusão”, p. 18)


Breve Comentário:

No início do seu texto “O Futuro de uma Ilusão”, Freud nos adverte que, ao indagar quais as origens de uma civilização específica, somos tentados a questionar pelo destino que a espera. Porém, faz-se necessário perceber que “o valor de uma indagação desse tipo é diminuído” (...) “sobretudo pelo fato de apenas poucas pessoas poderem abranger a atividade humana em toda a sua amplitude”. [1]
Ora, o conhecimento do presente e do passado é diretamente proporcional à possibilidade da emissão de um juízo sobre o futuro. E quase sempre é de maneira ingênua que as pessoas experimentam seu presente, não sendo capazes mesmo de estimar com precisão o seu conteúdo. Para isso seria necessário um certo distanciar-se a fim de que, numa perspectiva de passado, pudesse o presente servir de base para a antevisão sobre o que há de vir.
Mesmo Sigmund Freud flagrou-se em tal condição, por ocasião do 50° aniversário da escola na qual houvera estudado em sua juventude, quando fora convidado a compor uma redação alusiva à instituição de suas lembranças pueris. Naquela época distante, como os seus demais colegas, nutria uma visão e uma interpretação do mundo dos homens que consistia numa obnumbilada constatação da necessidade, a contragosto, de disciplina e adaptação àquele ambiente que se configurava, com muita facilidade, como uma continuidade das ‘imagos’ (imagens) da primeira infância, na casa paterna.
A figura do ‘pai’, que já havia perdido o impacto da associação com um super-homem, fora substituída pela figura do professor. Os seus colegas, por sua vez, como que preenchiam a ausência dos seus próprios irmãos. Assim, de seu mundo doméstico, passara a interagir em um mundo maior, visando tomar rumo para o mundo dos homens.
O curioso é que Freud, em sua maturidade, ao se encontrar com os seus velhos mestres nas ruas de Viena, ficava perplexo ao perceber que a diferença de idade entre ambos era diminuta e sua própria avaliação da ‘qualidade’ essencial daqueles, equivocada.
Subliminarmente, podemos refletir o quanto é forte e dominador todo o processo de estruturação e adaptação de mundo diante dos quais nos deparamos para largarmos nossa natural situação de animalidade e nos constituirmos em seres humanos.
Em síntese, de seres repletos de envolvimento e intimidade com uma imobilizante atividade de busca pela satisfação de inúmeras necessidades de realizações prazerosas, somos compulsoriamente conduzidos a uma via de mão única com destino certo à racionalidade cerceadora e, paradoxalmente, composta de igualmente fascinantes possibilidades de exacerbação pulsional, agora, porém artificialmente comprimida a uma subjetividade devidamente contida e presumivelmente regrada.
A civilização humana, fruto de um construto das sucessivas gerações, redundando na elevação da vida humana bem acima da condição animal, deve muito à capacidade de extrair e transformar tudo que é necessário à sobrevivência da espécie, em forma de riqueza, e à regulamentação das relações dos indivíduos entre si, bem como à problemática distribuição desta riqueza.
Porém, o trabalho extrativista humano, bem como a regulamentação de seus efeitos entre os indivíduos, são interdependentes, uma vez que a satisfação pulsional da obtenção de riquezas, a dominação do homem sobre o homem e a aversão latente do indivíduo pela própria civilização, geram um perene estado de tensão (propiciador, no entanto, de uma estável e desejada continuidade).
E, neste sentido, é preciso concordar com o que escreveu Freud:
“A civilização, portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa. Visam não apenas a efetuar uma certa distribuição da riqueza, mas também a manter essa distribuição; na verdade têm de proteger contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a conquista da natureza e a produção de riqueza”.[2]

Como a civilização representa e consolida a imposição de um esquema de procedimentos a uma maioria por uma minoria detentora de poder, resta-nos compreender a necessidade da coerção e da censura às pulsões; pois, de qualquer forma, se assim não fosse, a maioria dos seres humanos, de per si, não estaria preparada para a labuta promovedora de novas riquezas.
Ademais, no cerne de cada ser humano há, decerto, tendências destrutivas, anti-sociais e anticulturais, chegando mesmo a dominar um grande número de indivíduos em toda parte do mundo e em cada momento da história.
Então, não é apenas o aspecto material que se denuncia como gravemente perturbador e enfático, mas o mental também. Desta forma, torna-se impossível evitar o controle das massas por uma minoria, como o é eliminar a coerção no trabalho civilizatório, dada a abundância de uma inercial indolência e de uma natural apatia diante de todos os argumentos contrários ao fascínio das paixões e indisciplinas de toda sorte.
Somente mediante a influência de líderes exemplares, condutores e indutores, é que se pode ser observado nas massas o impulso para a rendição ao trabalho e a contrita aceitação da renúncia ao que lhe vem como tendência naturalmente prazerosa.
Mas é sumamente necessário que esses líderes sejam providos de uma luz interna, intuitiva, que os façam agir com empatia, em conformidade com as necessidades da vida, além de terem atingido um bom grau de autodomínio. Apesar de que o fantasma da vaidade está sempre à espreita e corriqueiramente se revela disposto a lhe propor, com inegável e eficiente sedução, a troca do domínio dos seus próprios desejos pela cega simpatia das massas como ilusória condição sem a qual o poder, supostamente, esvair-se-ia de suas mãos.
Tudo isso nos suscita a indagação, caso inusitadamente houvesse novas gerações convenientemente educadas, desde a infância, sob os auspícios da mais elevada razão, usufruindo o melhor que a civilização possa oferecer, se teriam ou não atitudes diferentes do comumente observado. Seriam, então, afeitos ao trabalho sem a imposição coercitiva para tal, bem como haveria a ausência da necessidade de normatização social?
Freud assim nos responde:
“A grandiosidade do plano e sua importância para o futuro da civilização humana não podem ser discutidas. È algo firmemente baseado na descoberta psicológica segundo a qual o homem se acha aparelhado com as mais variadas disposições pulsionais, cujo curso definitivo é determinado pelas experiências da primeira infância”.[3]

Porém, em continuidade à segunda citação do enunciado deste trabalho, Freud sucumbe ao realismo:
“A experiência ainda não foi feita. Provavelmente uma certa percentagem da humanidade (devido a uma disposição patológica ou a um excesso de força pulsional) permanecerá sempre associal; se, porém, fosse viável simplesmente seduzir a uma minoria a maioria que hoje é hostil à civilização, já muito teria sido realizado – talvez tudo o que pode ser realizado”.[4]

Em conclusão, podemos inferir que a educação dificilmente encontraria um modo de conduzir homogeneamente os sujeitos, pois tal empreendimento se esbarraria indubitavelmente no fato de que há sempre um abismo assustador entre o ideal e o real. De qualquer maneira, existe o artifício humano da ‘ponte’ que possibilita, apesar de que não determina, certo fluxo migratório entre a realidade e a idealidade. Persistindo, no entanto, um critério: a aludida ‘ponte’ deverá ser sempre única para cada transeunte e, ainda mais, este deverá ser seu engenheiro-construtor, num proceder contínuo e laborioso, imprescindivelmente, iniciada já a partir da tão negligenciada primeira infância.


Jorge Pi



BIBLIOGRAFIA


FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud: Totem e Tabu e Outros Trabalhos – Algumas Reflexões sobre a psicologia de um escolar – Vol. XIII. Rio de Janeiro: IMAGO EDITORA, 1996, pp. 247-250.

_______________. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud: O Futuro de uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos – Vol. XXI. Rio de Janeiro: IMAGO EDITORA, 1996, pp. 15-19.

GUTIERRA, Beatriz Cauduro Cruz. Adolescência, Psicanálise e Educação: o mestre “possível” de adolescentes. São Paulo: Avercamp, 2003, pp. 101-107.




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[1] FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud: O Futuro de uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos – Vol. XXI. Rio de Janeiro: IMAGO EDITORA, pp. 15.
[2] Ibid., p. 16.

[3] Ibid., p. 16
[4] Ibid., p. 18.

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